Zuenir Ventura: “A memória e a ficção são inseparáveis”

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O escritor Zuenir Ventura no apartamento dele, no Rio de Janeiro (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)

Zuenir Ventura, com 81 anos, não pensa na morte. Flagra-se fazendo planos com Alice, sua neta, para daqui a 20 anos – e só então lembra que talvez não esteja vivo daqui a tanto tempo. O criador da expressão “cidade partida” – usada até hoje para definir o Rio de Janeiro – não para de produzir. Famoso por seus dois livros sobre 1968, ele quer escapar do rótulo de “advogado” daquele ano . “Me livra disso, por favor…”, diz, rindo. Autor de grandes reportagens, este ano Zuenir fez sua estreia como romancista, com o livro Sagrada Família (Objetiva, 232 páginas, R$ 36,90), em que mistura memórias próprias com memórias emprestadas – além de ficção pura e simples. Foi a obra mais vendida na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho.

O livro, de leitura agradável e rápida, retrata as relações difíceis de uma família do interior. O narrador é o menino Manuéu, aprendiz de pintor de paredes, inspirado no próprio autor. “É um livro cheio de espanto, sobre a perda da inocência”, afirma Zuenir. Aproveitando o tema do romance – a memória –, o autor me recebeu em sua casa para falar da família e do passado. Na entrevista, Zuenir conta causos sobre figuras reclusas, como seu amigo Rubem Fonseca, ou momentos difíceis, como a morte do seu amigo Vladimir Herzog durante a ditadura, em uma cela do Departamento de Ordem Política e Social, o temido Dops. Tudo sem perder o tom manso e o bom humor. O resultado dessa conversa você confere abaixo:

 

ÉPOCA – De onde surgiu a ideia de um romance sobre relações familiares?


Zuenir Ventura – O tema família me persegue há muitos anos. Fui criado numa família tradicional, de classe média baixa. Meu pai era pintor de parede e essa também foi minha primeira profissão. Há dez anos eu recolho memórias das pessoas. Mas o livro é realmente ficção, porque as memórias que uso não são só minhas, mas também inventadas ou mesmo emprestadas. No final, não dá para saber exatamente o que é realidade e ficção. Os personagens principais eram reais, em um primeiro momento, mas eles ganharam voo próprio e viraram uma fabulação. Outro dia meu editor me perguntou, sobre um episódio muito marcante da história: “Isso é verdade, Zuenir?” E eu respondi: “Não sei”. Ele pediu que eu não escondesse o jogo, mas realmente já não sei mais o que é verdade ou não. Por isso usei Manoel de Barros na epígrafe: “Só 10% é mentira, o resto é invenção”. A memória não é objetiva. O Pedro Nava, nosso grande memorialista, dizia assim: “Em matéria de memória, você não sabe onde acaba a lembrança e começa a imaginação”. As duas são inseparáveis, a verdade e a ficção.

ÉPOCA – Mas o que da sua família está na história?


Ventura –
É claro que tem coisas da minha família ali. Mas também tem a dos outros: histórias que ouvi ou observei. É um retrato de uma família patriarcal, em que o homem é o provedor – às vezes o tirano. Naquela época havia muito pudor, recato e hipocrisia. Você podia fazer, mas ninguém poderia ver. Fazia-se tudo o que se faz hoje, mas escondido. Quis falar desse período da II Guerra Mundial e as duas grandes ditaduras brasileiras – a civil, de Vargas, e a militar. Eu sofri um pouco com as duas. Acho que é um livro em que há uma perda da inocência. Aquele garoto, de nove anos, o narrador, se surpreendendo com as revelações e descobertas. É um livro cheio de espanto.

ÉPOCA – As relações familiares que o senhor retrata são atávicas, em que sentimentos ruins como o rancor e a inveja convivem com o amor. O senhor também tem essa experiência familiar?


Ventura –
O Nelson Rodrigues, que retratou a família em um ambiente urbano, dizia o seguinte: “Não há família sem adúltera”. A família daquela época tinha todas essas coisas. Havia pedofilia, incesto, infidelidade. O adultério era um pecado mais feminino, porque o homem podia trair. Algumas histórias e casos daquele existiram na minha família, como havia em todas: a mulher que ficava sem casar ou que aos 30 anos era considerada balzaquiana, por exemplo. Os tabus recaíam sobre as mulheres.

ÉPOCA – Há quem encare o senhor como o grande “advogado” de 1968…


Ventura –
Me livra disso, por favor… (risos)

ÉPOCA – Em 1968 ou depois, o senhor precisou lidar com essa herança familiar repressora?


Ventura –
Foi um grande problema. Sofremos muito. Sobretudo sexualmente. Eu percebo que o livro mesmo fala muito de sexo. E vejo que, naquela época, era o sexo mesmo que comandava tudo – mas o sexo reprimido, calado. Nós falávamos mais de sexo do que fazíamos de fato. É aquela coisa: falamos muito mais de liberdade durante uma ditadura. A minha geração toda só se libertou em 1968. Depois que acabei o livro, conversando com meus editores, percebi que peguei dois momentos da nossa história: a repressão comportamental e depois a liberação.

 

ÉPOCA – O senhor já falou que, mesmo em 1968, o senhor – e toda a esquerda – era “prafrentex mas muito moralista”. A esquerda era moralista?


Ventura –
Muito moralista. O que é engraçado, porque ela arriscava até a vida pela liberdade política. Mas, no comportamento, era muito reacionária. Há histórias dos guetos da esquerda em que a mulher não tinha a menor liberdade. A mulher que “dava” era estigmatizada. Eles falavam em casamento aberto da boca para fora, mas esperavam o casamento tradicional.

ÉPOCA – O senhor nasceu em uma família pobre, mas seguiu uma carreira mais intelectual. Como conseguiu superar as falhas na formação?


Ventura –
Isso é engraçado, porque minha família era pobre, mas não miserável. Nunca tive dificuldades de alimentação ou algo do tipo. Mas precisei começar a trabalhar com 11 anos, como pintor de parede, da mesma forma que o narrador do livro. Fui também contínuo de um laboratório de próteses dentárias em Barra do Piraí, depois fui professor primário. Para estudar de graça, o colégio me ofereceu a chance de dar aulas. Eu adorava ensinar e queria seguir carreira de professor. Mas era preciso vir para o Rio de Janeiro. Eu vim para cursar Letras na UFRJ. Era uma coisa curiosa, porque vinha de uma família iletrada, mas eu adorava ler. Isso e jogar basquete (risos).

ÉPOCA – O que o senhor lia?
Ventura –
Era uma formação muito desorganizada. Nova Friburgo não tinha muita oferta. Mas li Judas, o obscuro, que me marcou muito. Eu li esse negócio adolescente, não sei como isso foi cair na minha mão. Logo depois, veio Moby Dick. Era “pauleira”, mas eu lia o que pintava. Depois apareceu em Friburgo uma professora que conhecia muito literatura. Foi ela que me apresentou Machado de Assis e, depois, o primeiro Proust. Mas era uma leitura muito desorganizada.