Qual espécie vale mais?

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Cães e gatos viram ameaças para espécies nativas quando entram em áreas de conservação. Os bichos domésticos, que contam com nossa simpatia em situações cotidianas, revelam seu lado caçador e predador em regiões naturais, reservadas para a preservação de outras espécies ameaçadas de extinção. Como lidar com isso? Alguns biólogos defendem até medidas extremas, como o extermíno de cães e gatos em áreas naturais. A polêmica levou alguns representantes de sociedades protetoras dos animais a criticar o modo como julgamos o valor de cada espécie. Para Rosângela Ribeiro, gerente de programas veterinários da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA), dizer que uma espécie tem mais valor do que outra é o mesmo que dizer que crianças têm mais valor do que idosos.

É o que ela conta na entrevista a seguir:

Época: Algumas espécies têm mais valor do que outras?
Rosângela Ribeiro: Sim, infelizmente na maioria das sociedades ocidentais e orientais algumas espécies possuem um status superior a outras espécies. E este valor varia de sociedade para sociedade e depende de fatores culturais, históricos, biológicos, religiosos, sociais e econômicos. Por exemplo, há locais na Índia (Vila de Deshnok, no Rajastão), onde os roedores, principalmente os ratos são considerados seres divinos e compartilham os mesmos pratos, copos e camas com a população. Estes animais circulam livremente pelos templos e casas, são alimentados e protegidos pela população que os tratam com veneração e respeito. Em nossa sociedade ocidental, os ratos são considerados pragas e a maioria das pessoas não vê mal algum em exterminá-los, muitas vezes com métodos cruéis, utilizando venenos e ratoeiras, de forma inadequada. Isso tem a ver com uma noção chamada especismo.

Época: O que é especismo?
Rosângela: O termo “especismo” é denominado como a “atribuição de valores ou direitos diferentes a seres vivos dependendo de sua espécie”. O termo foi cunhado pela primeira vez em 1970 pelo psicólogo britânico Richard D. Ryder, e mais tarde foi largamente adotado por diversos autores como Peter Singer, Tom Regan, etc. Na época em que apareceu pela primeira vez, Richard Dryer afirmou: “Eu uso a palavra ‘especismo’ para descrever a discriminação habitual que é praticada pelo homem contra outras espécies (.) Tanto o especismo quanto o racismo ignoram ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aqueles que são discriminados.” Podemos dizer que o especista clássico acredita que por ser da espécie humana possui mais direitos e importância do que a vida de qualquer outro ser. Assim os fatores biológicos que determinam a linha divisória de nossa espécie com as outras espécies passam a ter um valor moral – ou seja, a vida da nossa espécie vale “mais” que a de qualquer outra espécie.

Época: Como isso afeta nossa visão dos animais?
Rosângela: Existem também os especismos em relação às diferentes espécies animais. Por exemplo: em nossa sociedade ocidental os animais como vacas, porcos e galinhas possuem um status moral inferior e por isso a sociedade aceita que estes animais sejam criados e abatidos para o consumo alimentar, já os cães e gatos possuem um status superior, sendo que o consumo destes animais não é bem aceito pela maioria das pessoas.

Época: Os humanos naturalmente sentem mais empatia por algumas espécies próximas, como coelhos e cães, ou esteticamente admiráveis, como tigres e baleias, em detrimento de outras. Está correta essa diferenciação?
Rosângela: Sim, a beleza e a raridade de determinada espécie esta bastante relacionada ao status que esta possui nas diferentes sociedades, mas nem sempre são os principais fatores. Existem muitos outros fatores que são subjetivos (velados) e que vêm de mitos e dogmas antigos, muitas vezes religiosos e/ou sanitários. Existem mitos como: “os porcos são animais sujos, impuros, pois gostam de sujeira”, na verdade eles precisam resfriar a pele sem pelos e pigmentos e deitam na lama para isso, mas não “gostam” de sujeira como muitos pensam. Este tipo de mito ajuda a criar certo preconceito entre as pessoas. Os porcos são animais tão inteligentes, sociáveis e limpos como os cães, mas as pessoas em geral não criam porcos como animais de estimação, salvo algumas exceções. Eles também podem ser bons animais de companhia.

Época: E os animais domésticos?
Rosângela: Algumas espécies passaram por um processo de domesticação que já dura mais de 12 mil anos, como cães, gatos e cavalos e isto ajudou a consolidar a empatia que temos por estas espécies. São animais extremante inteligentes, curiosos, fiéis e criam vínculos facilmente. Assim podemos dizer que o comportamento, o modo de vida e a aparência de uma determinada espécie colaboram para que ela tenha mais empatia que outra, mas como disse anteriormente, isto depende muito do local e da sociedade (vide exemplo do cão em algumas regiões da Coréia e da China).

Época: Devemos dedicar mais esforço de conservação e pesquisa a populações de espécies ameaçadas (como os grupos remanescentes de macacos muriquis-do-norte) do que a populações de espécies que não correm risco (como os búfalos)?
Rosângela: Quando tratamos de alocação de recursos financeiros e humanos, a questão é bem complexa. Seria como decidir se vamos alocar esforços para salvar idosos, crianças, adolescentes e adultos. São todos humanos e do ponto de vista ético todos têm os mesmos direitos. Do ponto de vista utilitarista, todos possuem a mesma importância em nossa sociedade. Quando falamos de espécies de animais, poderíamos determinar quais seriam os critérios para escolhermos focar nossos recursos, poderíamos escolher o número de animais, a importância econômica do animal, a dificuldade reprodutiva, as chances de entrar em extinção. Existem inúmeros critérios que poderiam ser escolhidos, mas voltando ao mesmo ponto, do ponto de vista ético, todos possuem os mesmos direitos. Todos estes critérios devem ser discutidos com todos os membros da sociedade, com biólogos, veterinários, público em geral, organizações protecionistas, etc. e estes devem chegar a um consenso. Obviamente a escolha destes critérios geralmente segue a “esfera de consideração”, como explicou o autor Primarck.

Época: Como funciona essa esfera de consideração? É assim que decidimos quais animais valorizamos mais?
Rosângela: Para decidirmos quais humanos nos interessam mais, a esfera menor de consideração humana se concentra em si mesmo, levando a um ponto de vista egocêntrico. Depois se estende aos membros da nossa família. A seguir passa para pequenos grupos sociais (por exemplo, tribos, comunidades locais), os grupos sociais maiores (definidos pela raça, nação ou religião), e depois todas as pessoas. Se estendermos esse tipo de consideração ética para os outros animais, ela ocorreria primeiro ao nível das espécies mais próximas (perspectiva biocêntrica) e depois em uma esfera maior de preocupação (ecocêntrica), que reconhece os ecossistemas e, talvez, a Terra inteira como focos dignos para determinar as decisões éticas. Devemos, na verdade, somar os esforços para encontrarmos soluções humanitárias e que tentem preservar ao máximo a maioria das espécies envolvidas e o meio ambiente de forma integrada.

Época: Em uma reportagem recente, mostramos como alguns biólogos discutem medidas de extermínio de animais predadores (como cães e gatos) para salvar espécies endêmicas ameaçadas em áreas de conservação (como parques nacionais). Faz sentido?
Rosângela: Em primeiro lugar devemos realizar outros estudos para avaliar o real impacto destes animais em áreas de conservação. Ninguém nega que os gatos caçam espécies silvestres, mas a quantidade e o impacto desta caça ainda são controversos dentro do meio acadêmico. Muitos pesquisadores contestam os números apresentados. Segundo Christine O’Keefe (da organização de defesa de animais Stray Pet Advocacy), estima-se que somente 7% a 10% da dieta dos felinos consiste em aves e que apenas 5% a 56% dos gatos domésticos são caçadores. Sabemos que existem outros fatores que colaboram para dizimar espécies nativas: destruição do habitat, espécies invasoras, poluição, aumento da população humana e caça e extração excessiva. Portanto, os cães e gatos ferais representam apenas um dos componentes e não podem ser colocados como os únicos vilões.

Época: Existe alguma experiência bem sucedida e humanitária (sem extermínio) para salvar essas espécies ameaçadas por predadores?
Rosângela: Existem vários exemplos bem sucedidos de controles de cães e gatos ferais em áreas pequenas e médias, onde foram colocadas grades para separar os gatos das áreas de conservação, onde foram realizadas campanhas educativas com os tutores destes animais – que moram ao redor destas áreas -, além da criação de legislações mais severas. Nestes locais, os tutores foram obrigados a esterilizar seus animais, microchipá-los e deixá-los dentro da residência. Sabemos que os programas empregados com sucesso em zonas urbanas, podem não ter o mesmo impacto no controle do comportamento natural do gato de caçar. Mas quando aplicado com retirada dos animais jovens para adoção, podem ter um impacto bom significativo na população e consequentemente no meio ambiente. Ainda não há estudos concluídos de recolhimento, em grande escala, de animais que vivam em grandes áreas de conservação ambiental, pois as ações humanitárias (mais recomendadas) exigem um trabalho bastante complexo e oneroso. Geralmente, os governos optam por ações de eutanásia em massa, até mesmo com o uso de iscas de veneno. São ações pouco aceitas pela sociedade local e totalmente abolidas pelo movimento de proteção animal do ponto de vista ético. Mas em alguns locais, como nos Estados Unidos, estão sendo desenvolvidas medidas de controle com educação, esterilização e marcação com chips. Essas medidas têm tido sucesso. Falta, entretanto, a conclusão, a comparação e a publicação destes trabalhos.

Época: Biólogos e conservacionistas valorizam áreas com maior diversidade e com um ecossistema mais completo, com várias interações e espécies. Salvar a diversidade de formas de vida na Terra não deveria ser a prioridade para quem gosta de animais?
Rosângela: Sim, é claro, todos nós humanos e não humanos compartilhamos o mesmo ecossistema, não existe espécie mais ou menos importante. O que existe são espécies mais ou menos adaptadas, mais ou menos vulneráveis. E, infelizmente, existe uma espécie que tem o poder de destruição e construção maior que todas as outras. Por isso temos a obrigação, como membros desta espécie de procurar a todo custo solucionar estes problemas da melhor maneira possível.

(Alexandre Mansur)