“Essa história não cheirou nada bem”/ Jornal Zero Hora-22.09

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por Alexandre Paz / Especial Zero Hora

Em 2009, o jornalista e escritor nascido em Montenegro (RS) Diniz Júnior, 58 anos, estava a trabalho em Hamburgo, na Alemanha, quando soube por ambientalistas europeus do envio do lixo da Inglaterra para o Brasil. Quando voltou ao país, foi verificar a história e se deparou com uma situação que o incomodou. O sentimento de revolta aguçou a criatividade do gaúcho que resolveu investigar o caso a fundo por oito anos. Da coleta de informações nasceram dois “filhos”: a exposição “Sim, nós enviamos o lixo”, uma mostra itinerante composta por 20 fotografias; e o livro “Toma que o lixo é teu”, lançado em 2016 pela editora Portos & Mercados e que pode ser adquirido pela internet na página facebook.com/djota61/ por R$ 35. Confira um pouco sobre esta história nas palavras do escritor.

Como foi pra você descobrir e vivenciar esse caso?

Na verdade foi muito interessante essa descoberta. Estava visitando o porto de Hamburgo a convite do governo alemão para conhecer a sua infraestrutura. Faziam parte da Missão representantes do governo brasileiro ligados a área de transportes, Energia, Óleo e Gás. O ano era 2009 e nessa época era editor de uma Revista que abordava o Comércio Exterior. Representantes de algumas ONGS nos procuraram no hotel e informaram que alguns países da Europa estavam enviando lixo em contêineres para o Brasil. A informação era de remessas ilegais para vários portos, e um deles seria o de Rio Grande. Senti o cheiro de uma grande história a ser contada. Eu era o único jornalista brasileiro na missão. Quando retornei ao Brasil, em Rio Grande, a Receita Federal confirmou a história narrada, em Hamburgo, pelos ambientalistas europeus.

Por que decidiu escrever um livro sobre o caso?

Fiquei muito revoltado com essa história. Toneladas de lixo estavam sendo enviadas em contêineres em um esquema cercada de fraude, desrespeito ambiental e muitos interesses financeiros. Queria entender esse absurdo. Ou as autoridades sanitárias desses portos europeus não estavam atentas ou, se tinham conhecimento, não interferiram, concordando com a barbaridade que estava sendo cometida. Imaginem o seguinte cenário: fazer da sua casa um enorme depósito de lixo. Foi exatamente o que ocorreu em julho de 2009 no Brasil, no nosso Estado, na nossa cidade. O Brasil, a nossa casa, foi o destino de 1 500 toneladas de lixo acomodadas em contêineres que atravessaram o oceano. Colocar essa história em um livro é uma forma de sempre lembrar que isso aconteceu por aqui e não passou despercebido. São necessárias leis mais rigorosas para que essa inacreditável história não se repita.

 Pesquisou por quanto tempo para escrever o livro?

Na verdade a pesquisa foi desde 2009, até 2017 quando lancei a obra na Feira do Livro da Fundação Universidade do Rio Grande. Nunca pensei que daria tanto trabalho escrever um livro, mas foi muito bom, dias e noites pesquisando, checando informações. Evidente que tive apoio de vários amigos jornalistas até a história virar um livro. Sem falar do apoio cultural da CMPC CELULOSE que abraçou o projeto desde o seu início, bancou a obra.  É difícil escrever livro no Brasil, viabilizar a obra, não é nada barato. Sem o apoio privado não estaria aqui dando essa entrevista. Sou muito grato a esse apoio.

A repercussão foi grande no exterior?

Nossa. Na contracapa do livro fiz questão de destacar essa repercussão. Os grandes jornais da Europa fizeram um enorme barulho. Por pouco esse episódio não causou um incidente internacional com o Reino Unido. O governo inglês disse que aceitaria o lixo de volta, reconheceu o envio e garantiu que os responsáveis seriam punidos. O governo brasileiro na época mandou a representação brasileira em Genebra apresentar uma queixa contra a Inglaterra por tráfico de resíduos perigosos e ordenou a devolução de todos os contêineres. A Inglaterra acionou a Scotland Yard para caçar os culpados em solo britânico, prendendo- por alguns dias – quatro pessoas e elegendo-os como “culpados” pelo grave problema. No dia 02 de agosto de 2009 o navio MSC ORIANE atracava em Rio Grande para levar as 740 toneladas de lixo de volta para a Europa.

O que tuas pesquisas para o livro te ensinaram sobre os descartes de lixo realizados ilegalmente pelo mundo?

Costumo dizer em encontros em escolas e universidades que não sou nenhum especialista em meio ambiente, em lixo, em mudanças climáticas e essa coisa toda. Sou jornalista, trabalho com fatos reais, tenho um olhar diferenciado para tudo, sou desconfiado bisbilhoteiro, questionador, chato mesmo, como todo jornalista deve ser. Estou ali para narrar uma história que aconteceu em 2009, e essa será minha contribuição para a sociedade. É essa paixão, esses temas que me movem. Na verdade continuam me ensinando muita, muita coisa. Estamos sempre aprendendo. As pessoas devem não só aprender, mas agir fortemente. Jean-Michel Cousteau, oceanógrafo e fundador da  Ocean Futures Society, em entrevista que fiz para o livro, resumiu bem essa questão: “ Depende de nós e somente nós. Se nos preocuparmos o bastante, podemos mudar leis, governos e até culturas. Cada um de nós pode ser um bom exemplo daquilo que deveria ser feito”. Creio que o caminho é este.

Um dos contêineres trazia um tonel com texto escrito em português “Por favor, entregue esses brinquedos para as crianças pobres do Brasil”. Como essa frase bateu em ti e por que acha que escreveram isso?

Aquilo foi uma “porrada”, um  enorme deboche. Não foi a minhoca, que também veio no lixo, que me causou tamanha indignação. Foram os bilhetes. Na verdade é como se afirmassem, sem nenhum pingo de vergonha no rosto: “Aproveitem o lixão recebido e não esqueçam nossa contribuição para a abertura de novos postos de trabalho com a reciclagem” . As bonecas enviadas não tinham cabeças, nem os braços e nem as pernas. As nossas crianças merecem respeito. Talvez tenham sido os bilhetes  os maiores  causadores da indignação da população, que cobrou fortemente uma reação das autoridades brasileiras.

 Ao pesquisar os desdobramentos, outros casos parecidos ocorreram depois deste?

Sim. Um contêiner carregado com 22 toneladas de  resíduos descartáveis chegou ao porto de Rio Grande em 2010, num esquema muito semelhante ao do ano de 2009. O lixo era proveniente da Alemanha. Autoridades brasileiras ligadas à área do meio ambiente suspeitam que o contêiner  pode ter sido um teste, uma forma de saber se, depois do episódio de 2009, novos carregamentos voltariam a entrar no Brasil. É o Primeiro Mundo livrando-se da carga de seus rejeitos e desperdícios e empurrando-os para os mercados abertos do subdesenvolvimento.

Quanto cidadão, como essa história te impactou?

Muito. Desde os bilhetes, os brinquedos enviados, até a imensa sujeira que estavam dentro dos contêineres como fraldas, seringas, tinha até um gato morto. No Brasil a imagem chocou porque é rara. Para as pessoas comuns ver as cenas do lixo em dezenas de contêineres é assustador. Para tentar resolver esse problema foi assinada em 1989 a Convenção da Basileia que regulamenta os movimentos internacionais de resíduos perigosos. A grande maioria assinou o documento com exceção dos Estados Unidos. Ainda assim, o problema persiste no mundo. O lixo continua sendo enviado para a periferia do planeta, onde as reclamações são ignoradas ou abafadas com dinheiro ou violência.

O envio de toneladas de lixo para o Brasil comprova que nem sempre a convenção da Basileia é cumprida, apesar da repercussão internacional. Na verdade a sociedade de consumo não sabe o que fazer com as toneladas de lixo que produz. Há várias teses sobre isso, que por exemplo em uma economia globalizada é inevitável a livre circulação de mercadorias, inclusive o lixo e que esse comércio deva ser regulamentado, mas não proibido. Há os que defendem que cada país deva armazenar o próprio lixo e não exportá-lo. Na verdade, como em qualquer negócio que envolva muito dinheiro, o que se deve combater é o comércio ilegal, as grandes máfias e não transformar os países pobres em um lixão do mundo rico.

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