Turquia proíbe entrada no país de porta-aviões brasileiro vendido como sucata

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O maior temor do governo turco é em relação à quantidade de amianto contida na embarcação, especulada em cerca de 9,6 toneladas. A substância é altamente cancerígena, e já havia resistência por parte de ativistas e ambientalistas turcos sobre a recepção do material

Vendido como sucata pela Marinha do Brasil à empresa turca Sok Denizcilikve Tic por R$ 10,5 milhões, o porta-aviões São Paulo, que enfim se encaminhava para os últimos capítulos de sua existência, se vê agora no centro de um impasse internacional. Nesta sexta-feira (26), o ministro do Meio Ambiente, Cidade e Mudanças Climáticas da Turquia, Murat Kurum, divulgou um comunicado onde proíbe a entrada do navio brasileiro em águas turcas. Segundo ele, trata-se de um ato de precaução, porque o governo brasileiro não enviou um relatório, exigido no último dia 9 de agosto, com um inventário de materiais perigosos contidos na embarcação.

“Após uma liminar da Justiça Federal do Brasil relativa ao desmantelamento do navio neste país, a fim de confirmar a permissão condicional emitida por nós, escrevemos ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e à Sök Denizcilik ve Tic em carta datada de 9 de agosto de 2022 . Ltda. ?ti com um pedido de relatório de inventário de mercadorias perigosas. Devido ao fato de ainda não ter sido apresentado o relatório exigido, o navio não poderá entrar nas águas territoriais da Turquia”, informou Kurum.

O maior temor do governo turco é em relação à quantidade de amianto contida na embarcação, especulada em cerca de 9,6 toneladas. A substância é altamente cancerígena, e já havia resistência por parte de ativistas e ambientalistas turcos sobre a recepção do material.

No texto, o ministro ressalta que, em 30 de maio deste ano, foi dada uma aprovação condicional à entrada do porta-aviões no país para posterior desmantelamento, desde que fosse apresentado um inventário detalhado com vistoria sobre as substâncias contidas nele, o que segundo ele não foi feito ou entregue.

“Desde o início do processo, expressamos nossas obrigações sob a Convenção de Basileia e nossos direitos decorrentes do Direito Internacional, e repetidamente compartilhamos que não aceitaríamos o navio sem qualquer hesitação e o enviaríamos de volta antes que ele entrasse nas águas do nosso país, em caso de qualquer negatividade perigosa”, diz. E conclui:

“Foi decidido revogar a aprovação de notificação condicional dada para o navio “NAE São Paulo”. De acordo com esta decisão, o navio não poderá entrar nas águas territoriais turcas. Sempre cumprimos o Direito Internacional de acordo com a legislação em cada navio que veio ao nosso país para operações de desmantelamento. Acompanhamos de perto todas as etapas do processo, não só no navio NAE São Paulo, mas também em todos os navios. Não permitimos nenhum passo que possa prejudicar nosso meio ambiente e nosso povo. Que nossa nação descanse em paz”.

A reportagem questionou a Marinha do Brasil sobre os próximos passos em relação à embarcação após a decisão do governo turco, mas ainda não obteve resposta. O Ibama também ainda não se posicionou, até o horário de publicação da matéria, sobre o fato.

‘Navio de amianto’

O antigo porta-aviões São Paulo seria desativado em Aliaga, na costa oeste do país. Entretanto, o acordo provocou fortes reações da oposição e de ONGs ambientalistas, que denunciaram o risco de contaminação por amianto em meios terrestres e marinhos, e chamaram a embarcação de “navio de amianto”.

“Paramos o navio tóxico São Paulo. Esse veículo foi impedido porque soubemos nos manter unidos e determinados”, tuitou o grupo ambientalista Doganin Cocuklari, que havia convocado uma manifestação contra a entrada do navio em águas turcas.

Agenda política

A exposição ao amianto, reconhecido como cancerígeno, foi proibida na Turquia em 2006. Contudo, segundo a mídia turca, trabalhadores de diversos setores, principalmente os que atuam no desmantelamento de navios, seguem expostos ao mineral.

O destino da embarcação tornou-se um teste de compromisso do presidente turco Recep Tayyip Erdogan com o meio ambiente, a menos de um ano das próximas eleições legislativas. De acordo com as pesquisas, os temas ambientais podem ser decisivos para milhões de jovens turcos que votarão pela primeira vez em 2023.

Esperança

Neste momento, o porta-aviões está próximo às Ilhas Canárias, área de atribuição espanhola, e seu futuro é incerto. Emerson Miura, presidente do Instituto São Paulo-Foch, voltado justamente à preservação da embarcação de 265m de comprimento e 33,8 mil toneladas, recebe com esperança a informação. Ele espera que o negócio seja desfeito e que o navio possa, de volta ao Brasil, ser recuperado e exposto como um “navio-museu”.

– As autoridades brasileiras serão contatadas justamente para sabermos quem irá assumir a responsabilidade pela embarcação. Então, estou junto à minha equipe trabalhando para que, uma vez que o navio seja deslocado da Europa para cá, a gente possa ter em mãos um projeto e apresentar – disse. – Ele não pode mais ir para a Turquia, isso é fato, e a documentação está aí. Um contato meu na Espanha também já encaminhou documentos ao governo espanhol e, provavelmente, ele ficará à deriva até que haja uma nova decisão judicial.

Liminar ordenava retorno ao RJ e foi suspensa

Na novela envolvendo o porta-aviões, a Justiça já havia suspendido, no último dia 18, uma liminar previamente concedida ao Instituto São Paulo-Foch e que ordenava o retorno do porta-aviões ao Rio de Janeiro. O desembargador federal Reis Friede, da 6ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, acatou o pedido da União e da Empresa Gerencial de Projetos Navais, vinculada à Marinha, para que a medida fosse revogada. As alegações foram de que não haveria mais possibilidade de as autoridades brasileiras atuarem no caso e a embarcação estava em águas internacionais quando a liminar foi concedida. O caso agora ganha novos capítulos com o navio à deriva.

Novela

A reconstituição da saga do navio, comprado da França pelo Brasil nos anos 2000 e que teria navegado só 206 dias no Brasil, mostra como o porta-aviões se tornou tecnologicamente defasado e com potencial poluente. Vendido como sucata, poderá render em torno de R$ 100,4 milhões, quase dez vezes mais do que ao valor de venda.

A Marinha cogitou outro destino para o São Paulo. Em 2019, após desistir de um projeto de modernização que custaria R$1 bilhão, procurou especialistas para traçar alternativas de descarte ou reutilização para o porta-aviões São Paulo, na época recém-desativado. Especialista em transporte marítimo, logistica e construção naval, o engenheiro Jean Caprace, da Politécnica-UFRJ, sugeriu um modelo matemático para indicar o melhor custo-benefício entre as possibilidades de desmonte. A ideia não foi acatada.

— O que mais me surpreende é o interesse de uma empresa estrangeira. Devem ter feito muitos cálculos, mas é um negócio de alto risco, inclusive o de ter mais amianto a bordo que o declarado. Há compartimentos totalmente inacessíveis, que só serão descobertos quando abrirem — avisa Caprace.

Quando ainda era da França, o porta-aviões esteve em frentes de batalha na África, no Oriente Médio e na Europa. Com 266 metros de comprimento e 32,8 mil toneladas, a embarcação, explica Caprace, exige cálculos muito precisos e complexos para determinação de valores de venda.

Pelo contrato firmado com a França, o São Paulo precisaria ser esvaziado para ser revendido. Os gastos para transportar a embarcação, que, desativada, passa a ser oficialmente “casco de navio”, atingem a casa dos milhões de dólares.

Fonte: O Globo