Maior expedição brasileira no interior da Antártica, liderada pela UFRGS, chega ao fim

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Pesquisadores brasileiros em frente ao módulo Criosfera 2Centro Polar e Climático / UFRGS / Divulgação

A maior expedição brasileira ao interior da Antártica chegou ao fim. Após 35 dias no continente de gelo, os pesquisadores da missão Criosfera 2 deixaram o local na última segunda-feira (9). Chegaram no mesmo dia em Punta Arenas, no Chile, onde devem ficar até a próxima semana preparando a carga para retornar ao Brasil, além de organizar as amostras de gelo que seguem direto para o laboratório da Universidade do Maine, nos Estados Unidos.

Liderada pelo vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jefferson Cardia Simões, que também é vice-presidente do Comitê Internacional de Pesquisa Antártica (Scar) e cientista líder do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), a missão Criosfera teve como objetivo investigar as consequências das mudanças do clima para a Antártica e para a América do Sul.

Segundo Simões, o Criosfera 2 é um container de 2,5 x 6 metros repleto de sensores que medem as condições meteorológicas e concentração de CO2. Ele está no topo de domo de gelo, chamado Skytrain Ice Rise (colina de gelo Skytrain). O equipamento vai funcionar de forma autônoma até dezembro deste ano, somente com energia eólica e solar. Dentro do módulo, a temperatura marcava 5ºC no último dia da equipe no local. Do lado de fora, o termômetro oscilava entre – 16ºC e -12ºC.

Em seu último relato, Simões reflete sobre os sacrifícios pessoais dele e de outros pesquisadores que participam de expedições no local. Também fala sobre sua volta para casa, as atividades de professor, que é responsável pela formação de futuros profissionais que terão de “tomar conta de um planeta profundamente alterado pela atividade humana”. Confira:

Criosfera funcionando

Hora de dizer adeus (ou quem sabe até logo) à Antártica.

Depois de inaugurarmos o Criosfera 2 no dia 4 de janeiro, iniciamos a preparação do módulo para o longo inverno polar. Até dezembro deste ano, os sensores e computadores terão que funcionar de maneira autônoma e somente usando energia éolica e solar. Todo o cuidado é pouco, temos que checar o aporte de energia de painéis solares e dos geradores eólico, e principalmente, checar se os equipamentos que medem dados meteorológicos funcionam normalmente. E selar o módulo, afinal, a neve fina pode entrar até pela mínima fresta da porta (que tem três camadas de borracha de vedação, mas talvez não seja o suficiente). 

No módulo persiste 5ºC , às vezes um pouco mais. Fora dele, fomos contemplados por dois dias ensolarados, mas frios, entre -12ºC e -16ºC.

Contemplação

No dia 5 de janeiro, ensolarado e sem nenhum vento, saí em uma caminhada solitária de dois quilômetros. Subi em uma pequena duna. Silêncio total, hora de contemplação dos picos gelados, um daqueles poucos pontos da Antártica não totalmente cobertos por gelo e neve. Mesmo assim, há enormes geleiras, algumas com mais de 30 quilômetros de extensão e cinco de largura, recortando as montanhas…

O Criosfera 2 é um container com sensores que medem as condições meteorológicas e concentração de CO2 Centro Polar e Climático/ UFRGS / Divulgação

Penso, por alguns instantes, na minha caminhada desde 1982, ainda um aluno de graduação em Geologia na UFRGS, quando tive a ideia inédita de trazer para o Brasil uma nova área de conhecimento científico. O Programa Antártico (Proantar) estava nos seus primórdios e não havia ninguém especializado em glaciologia no país. Talvez por ser visionário, talvez por leitura, imaginei que a questão da Criosfera se tornaria essencial conforme a interferência da humanidade no meio ambiente global fosse acentuada. Além do que, sem um glaciologista, não teríamos como avançar para dentro do continente. Interessante como construímos nossos imaginários geográficos: apesar de Porto Alegre estar mais perto da Antártica do que de Roraima, a região nos parecia distante e isolada. Não tínhamos ideia clara da influência no dia a dia gaúcho.

Foram 28 expedições, vários meses longe da família (outro dia, com a minha esposa Ingrid, calculamos que de 39 anos de casados devo ter passado cinco anos longe de casa). Hoje está muito mais fácil de trabalhar nas regiões polares. São viagens rápidas em missões curtas, raros ficam mais de 10 meses. Conheci colegas britânicos que iam ficar um ano, o navio não chegou na sua base (devido ao mar congelado) e atrasaram um ano. Naquela época, nos anos 1960, o pessoal só conseguia se comunicar por telegrama. Imagine sua família receber o telegrama: “Vou me atrasar, nos vemos em um ano (talvez)”.

Determinação

Ao longo desses anos de pesquisa e exploração polar, observei que as missões de sucesso são aquelas com líderes e pessoal que mantém uma atitude estoica diante da experiência. Aceitando os limites físicos, os longos períodos de espera, os limites seus e dos colegas para preservar a harmonia do grupo… E, é claro, aproveitando a oportunidade de viver e observar uma paisagem única na Terra, quase extraplanetária. Durante as missões, os indivíduos centrados e dedicados em atingir os objetivos traçados são os mais bem adaptados. Família e sentimentos ficam afastados, sublimados. Assim como a saudade, a necessidade de contato físico, o desejo sexual. Mas quando se aproxima o período de retorno, que pode se alongar por dias devido às condições meteorológicas, tudo isso começa a aflorar.

Dia 6 de janeiro, fomos (nós cinco) recolhidos no módulo Criosfera 2. Correria para desarmar as últimas duas barracas e logo o pequeno Twin-Otter estava aterrissando na pista de neve demarcada por sacos pretos. Só bagagem, pessoas e lixo para remover do sítio. Criosfera 2 fechado até dezembro deste ano. Missão cumprida.

A volta

Um voo de 20 minutos passa por áreas com enormes fendas de gelo (algumas tão largas que poderiam engolir um trator inteiro, ou mesmo o módulo Criosfera 2). Mostrando quão traiçoeiro poder ser o manto de gelo. Apesar de parecer imóvel, o gelo se movimenta entre alguns metros até dois quilômetros por ano, e muitas vezes se rompe, gerando as fendas. 

Aterrissamos na pista de neve do acampamento base da operadora logística Antarctic Logistic Expedition na Geleira Union, Montanhas Ellsworth. Estamos a quase 80 graus-sul. Aqui, dezenas de barracas servem de “hotel”, temos refeições prontas e o luxo máximo de um banho a cada quatro dias. Agora aguardamos o avião que aterrissará na pista de gelo dia 10 de janeiro para voarmos para Punta Arenas, no Chile. Serão mais alguns dias para preparar carga e amostras coletadas que serão enviar para Porto Alegre e à Universidade do Maine, nos Estados Unidos.

De agora em diante

A partir de agora, sigo novos caminhos na gestão e preparação de novos pesquisadores polares. Tempo de mudar de foco, e muita coisa para escrever, experiência, vivência e passar o que aprendi para a nova geração que terá que tomar conta de um planeta profundamente alterado pela atividade humana. Adeus aos acampamentos polares, parcerias com colegas sob condições limites, adeus à exploração dos limites físicos e emocionais. Mas talvez volte, quem sabe, em outras funções ao deserto branco e gelado.