Entrevista: como os mega-navios entopem o trânsito nos oceanos e atrasam a retomada

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       Cargueiros à espera para descarregar nos portos de Los Angeles e Long Beach no final de setembro

Pouco tempo depois do engarrafamento provocado pelo Ever Given, já havia dezenas de barcos à espera para descarregar as suas mercadorias nos portos de Los Angeles e Long Beach. Nos últimos meses, o engarrafamento foi piorando, chegando a ser mais de 100 cargueiros. Eram os primeiros sinais de crise, que explorámos aqui.

A explicação está numa tempestade perfeita no transporte marítimo, com oferta e procura totalmente desencontradas. Por um lado, a pandemia forçou a interrupção da produção na indústria e portos que, em vários casos, ainda não regressaram a 100%. Por outro, após uma interrupção do consumo no início da pandemia, as famílias dos países mais ricos usaram as poupanças acumuladas para irem às compras. Impedidas de gastar em férias, jantares fora ou concertos, a compra de bens foi o alvo preferido.

Custo dos fretes marítimos, Freightos Baltic Index

Muitas dessas mercadorias vêm da China, a fábrica do mundo, ainda a recuperar da crise. E 90% chegam pelo mar. A procura aumentou tanto que os cargueiros abandonavam portos europeus e americanos sem sequer serem carregados, para poderem voltar o mais rápido possível à China onde tinham encomendas à espera.

Alugar um contentor tornou-se um desafio e cada m2 de num cargueiro passou a ser altamente disputado. O preço de transportar um contentor de Xangai para Los Angeles aumentou de 2.500 para 25 mil dólares e as entregas têm atrasos de semanas. É um “containergeddon”, como lhe chama um especialista à Reuters.

“Se uma empresa portuguesa quiser encomendar algo da China, a empresa chinesa vai dizer-lhe que o aço, o petróleo ou o gás estão mais caros. Depois, como não há stocks, a fábrica diz que vai demorar um mês em vez de duas semanas a produzir. Ainda afetados pela Covid-19, o transporte para o porto leva mais dias e chega a um porto congestionado. Só até aqui já perdeu semanas”, explica Stavros Karamperidis, professor na Universidade de Plymouth, à EXAME. À chegada a um mega-porto, enfrentará outra fila de espera e terá provavelmente de lidar com falta de camionistas para a fase final da viagem. É muito mais tempo e muito mais caro. Joe Biden já implementou medidas de emergência para tentar resolver o problema.

A VISÃO escreveu sobre o tema há duas semanas, integrado no problema geral de escassez e subida de preços que atravessa um pouco todo o mundo. Nele, é citado Marc Levinson, historiador e autor do livro “The Box”, sobre a criação e evolução do contentor. Segue em baixo a entrevista completa.

Cargueiros à espera para descarregar nos portos de Los Angeles e Long Beach no final de setembro

“O comércio marítimo está demasiado concentrado e os governos terão de tomar medidas”

No ano passado, publiquei um livro sobre o que passa nesta crise. Chama-se “Outside the Box” e discute como o transporte marítimo se tornou menos confiável e como as cadeias de abastecimento se tornaram problemáticas. Argumento que muitos negócios transferiram a sua produção para a Ásia e construíram cadeias complexas com base em premissas de custos de produção e transporte que não ajustavam para o risco. Quando as empresas fazem esses ajustamento, as suas decisões sobre onde produzir fazem menos sentido.

Estamos a viver apenas um desencontro momentâneo entre oferta e procura ou há mais fatores por trás desta crise logística? Estou a pensar em problemas estruturais da indústria de transporte. 

A principal causa da crise é macroeconómica. os governos e bancos centrais de todo o mundo estimularam as suas economias para evitar uma depressão por causa da pandemia. Ao mesmo tempo, as famílias estavam muito limitadas no seu consumo. Não podiam ir de férias, os restaurantes estavam fechados, os concertos foram cancelados… Portanto, as pessoas gastaram o dinheiro em bens, enquanto os serviços caíam. É isso que cria a crise de cadeias de abastecimento. Os dados dos EUA mostram que a quantidade de bens consumidos aumentou três vezes. À medida que os padrões de consumo regressarem ao normal, a crise desaparecerá.

As transformações que a indústria atravessou nos últimos anos também ajudam a explicar esta crise ou a dificuldade em ultrapassá-la? Por exemplo, a utilização de cargueiros cada vez maiores.

Algumas das mudanças na estrutura das empresas de transporte pioraram a crise. Uma delas foi uma concentração considerável das empresas de transporte marítimo em três ou quatro grandes grupos, chamados alianças, que controlam 90% do mercado. Essas colaborações são aprovadas pelas autoridades de concorrência de cada país. Significa que a indústria é controlada por um pequeno número de grupos, que conseguem controlar a capacidade de transporte disponível, motivo pelo qual o número de navios caiu. Historicamente, a indústria teve sempre capacidade em excesso, o que se traduzia em preços muito baixos. Para o contrariar, uma das prioridades das empresas tem sido controlar a capacidade disponível, o que explica a transição para mega-navios. Em 2006, quando escrevi “The Box”, a capacidade do maior navio era nove mil “twenty-foot equivalent unit” [TEUs, unidade utilizada para medir a capacidade de carga destes navios, tendo por base as dimensões dos contentores standard]. Hoje, os maiores navios têm 24 mil. Os navios tornaram-se muito maiores muito rapidamente. A sua construção é cara e é difícil enchê-los totalmente. Muitas empresas abandonaram o negócio, porque não conseguiam competir com estes mega-navios.

Historicamente, a indústria teve sempre capacidade em excesso, o que se traduzia em preços muito baixos. Para o contrariar, uma das prioridades das empresas tem sido controlar a capacidade disponível

Estamos a falar de uma indústria que tinha margens muito apertadas.

Estamos a falar de uma indústria que, durante muitos anos, perdeu dinheiro, depois de ter introduzido estes grandes navios. As maiores empresas conseguiram suportar isso, as mais pequenas não. A ideia de barcos maiores era baixar o custo de transporte de cada unidade e isso funcionaria se eles estivessem cheios. O problema é que, até 2020, eles nunca estavam cheios. Navegavam muito abaixo da capacidade.

Isso começa com a crise de 2008?

Sim. Estes grandes navios tornaram as cadeias de produção menos flexíveis. Eles só podem ser usados em certas rotas que tenham tanta carga para transportar, exigem portos muito profundos e grandes guindastes para os carregar e descarregar. Quando há uma crise deste género, não é possível trocar de navios. Os cargueiros de 24 mil TEUs estão feitos para viajar entre China, Singapura ou Malásia e o Norte da Europa, com algumas paragens pelo caminho. Não podem ser usados para os EUA, porque os portos não conseguem lidar bem com navios desta dimensão. Embora seja necessário mais transporte para os EUA, é difícil usar esses navios.

Têm de mudar noutros países?

Não. Usam barcos mais pequenos. Na Europa, também há alguns portos em que não podem entrar. Esses grandes navios já estavam a complicar as operações nos portos bem antes da pandemia. A maior parte dos portos tinha menos circulação de navios, mas eles eram cada vez maiores, o que significa maior irregularidade nas cargas e descargas, o que torna o porto menos eficiente. Quem está no terreno tem de lidar com muita carga e, depois, carga nenhuma. As empresas de transporte criaram os navios mais eficientes para elas, mas não os mais eficientes para todo o sistema logístico.

As empresas de transporte criaram os navios mais eficientes para elas, mas não os mais eficientes para todo o sistema logístico