Entrevista: os erros da política de conteúdo nacional da Petrobras

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A exigência de conteúdo local pode ser cumprida com pouquíssimo produto nacional

por  Carlos Drummond / CartaCapital

As políticas de conteúdo nacional são boas ou ruins para o Brasil? Depende, avalia Mario Bernardini, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos. O País convive com dois modelos distintos, diz o empresário. A modelagem adotada no setor de óleo e gás parece inspirada nos anos 50 do século passado e seria contraproducente: adquirem-se internamente bens e serviços de baixo valor agregado e importam-se aqueles de alto valor. No fundo, afirma, os investimentos até agora têm acrescentado pouquíssimo conteúdo brasileiro. Já o sistema adotado na área de energia eólica seria moderno e estimularia a produção nacional. Na entrevista a seguir, Bernardini compara os dois modelos.

CartaCapital: O que são as políticas de exigência de conteúdo local mínimo?

Mario Bernardini: Segundo a Organização das Nações Unidas, são iniciativas utilizadas pela maioria dos países para fortalecer a estrutura produtiva de economias nacionais e incluem políticas e programas para acelerar o crescimento de setores da economia, como a indústria ou a agricultura, ou atividades específicas consideradas fundamentais.

CC: A política de conteúdo local do setor de óleo e gás é apontada por alguns como a causa de uma parte dos problemas da Petrobras, supostamente forçada a comprar no País equipamentos mais caros e menos eficientes.

MB: Essa reclamação tem origem em alguns problemas surgidos na implantação da política de exploração e produção de óleo e gás, principalmente no pré-sal. Há seis anos a Petrobras lançou um programa extremamente ambicioso de exploração e criou a maior demanda do mundo no setor. Como a empresa não investia significativamente há 30 anos, não existia indústria nacional de porte e com tecnologia para atender às necessidades surgidas de repente para a exploração dos campos de águas profundas, mesmo porque essa tecnologia não existia no mundo. Definiu-se a política de conteúdo local porque qualquer país eficiente aproveita oportunidades de desenvolvimento. Havia uma empresa estatal com um programa de investimentos colossal e não fazia sentido comprar todas as máquinas e equipamentos no mercado internacional.

CC: Como outros países agiram em situações comparáveis?

MB: Quando a Noruega, país muito menor e com menos tradição industrial, descobriu os campos grandes no Mar do Norte, adotou políticas semelhantes, mas de modo competente. Criou a empresa de exploração Statoil e esterilizou o dinheiro advindo da extração do petróleo em um fundo soberano, que hoje é um dos maiores do mundo. A petroleira fez parcerias com empresas multinacionais e locais para atrair ao país a produção de equipamentos não fabricados localmente, mas indispensáveis à exploração. Hoje é competitiva internacionalmente e investe no Brasil, inclusive. Isso contrasta com a atitude do nosso país, que, em vez de aproveitar as exportações excepcionais de commodities na década passada para estimular a indústria, prosseguiu na valorização do câmbio.

As regras de conteúdo nacional em óleo e gás parecem inspiradas nos anos 1950, critica o executivoCC: Portanto, a culpa não é do conteúdo local.

MB: Não, é do seu uso. Com a utilização dessa política de forma inteligente, a Petrobras poderia ter criado uma indústria de bens de capital em condições de fornecer de 40% a 80% das necessidades de máquinas e equipamentos. Em dez anos, o País teria um setor de componentes
para a exploração de petróleo e gás em condições de competir lá fora.

CC: Qual é a importância de se fortalecer o setor de bens de capital?

MB: O setor de bens de capital é o principal veículo do progresso técnico na economia. Fabrica as máquinas e os equipamentos utilizados por todos os outros segmentos e esses itens perfazem cerca de 30% a 40% dos investimentos da indústria de transformação. Somado ao segmento de construção, representa a maior parte da formação bruta de capital fixo, a medida do investimento da economia.

CC: Qual foi a principal falha do programa para óleo e gás?

MB: As executantes foram as empreiteiras, que não têm engenharia ou indústria mecânica, e depois de ganhar a concorrência tinham interesse em comprar o mais barato possível em vez de desenvolver a produção no País. Além disso, a fórmula de medição do conteúdo local lembra aquela utilizada nos anos 1950 para a criação da indústria automobilística, é anacrônica e permite atender à exigência quase sem comprar nada no Brasil.

O valor agregado é, por definição, nacional e inclui salários, encargos sociais, impostos, juros, energia elétrica, custos de venda, lucro. Isso perfaz 50% de conteúdo nacional e se o limite é 60%, basta comprar no País o equivalente a 10 pontos porcentuais para cumprir a exigência. Em geral, completa-se o total com a compra local do mais barato, parafusos e chapas.

Portanto, a exigência de conteúdo local atualmente pode ser cumprida com pouquíssimo produto nacional sem burlar a lei. Isso explica por que a Petrobras diz ter nas plataformas de 60% a 65% de conteúdo local e nós afirmamos não existir quase nada de bens de capital nacionais, que é o que interessa para o desenvolvimento. Outro erro é a medição do conteúdo local quando as instalações para a exploração estão prontas e não há mais como corrigir os efeitos das violações da exigência.

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No caso da energia eólica, as regras funcionam. Créditos: Vanderlei Tacchio/Eletrosul

CC: Falam em quase 300 milhões de multas acumuladas em 30 projetos.

MB: Fala-se em alguns bilhões em passivos possíveis. Essa é a causa da grande orquestração contra a exigência de conteúdo mínimo local, acolhida pelos formadores de opinião pública por desconhecimento ou má-fé.

CC: Qual é o resultado da política de conteúdo local no setor de geração eólica de energia?

MB: A política do Ministério de Minas e Energia foi absolutamente contrária à indústria nacional. Felizmente, o BNDES há três anos criou uma política de financiamento que tornou o produto local capaz de concorrer com o importado. Alongou o prazo de financiamento e possibilitou um custo que, trazido a valor presente, tornava competitivo o aerogerador nacional, antes entre 20% e 25% mais caro que o importado por causa do custo Brasil. Isso mudou completamente o jogo.

A contrapartida do financiamento foi uma nacionalização progressiva do produto, feita de forma inteligente de modo a envolver principalmente os elementos de maior valor agregado. Três anos depois, o resultado dessa política é brilhante. Temos uma indústria de aerogeradores que atende plenamente à demanda nacional e, com o câmbio a 3,50 ou 3,60 reais, poderia exportar. O setor tem entre 20 e 30 empresas com 40 mil empregos qualificados e bem remunerados e instala de 2 mil a 3 mil aerogeradores por ano, completamente nacionais.

CC: Quais as condições de competitividade da indústria brasileira de bens de capital, descontados o custo Brasil e a ineficiência decorrente do declínio da indústria desde os anos 1980?

MB: Fizemos há pouco um levantamento da produção física por homem-hora de equipamentos iguais ou muito parecidos por empresas alemãs com filiais no Brasil, Estados Unidos e China. Para nossa surpresa, verificamos que a produtividade por homem-hora do Brasil nessas unidades é equivalente àquelas da Alemanha, dos Estados Unidos e superior à da China. Seria de esperar que os preços desses equipamentos no Brasil, na Alemanha e nos Estados Unidos fossem semelhantes e na China, mais caros. Mas o exame dos custos de produção, portanto dos preços sem as margens, revelou outra surpresa. A China, a menos produtiva por homem-hora, tem um produto mais barato. Isso significa que, lá, mesmo as empresas pouco produtivas são competitivas, enquanto no Brasil ocorre o oposto, até as mais produtivas não conseguem ter preços para competir. 

*Reportagem publicada originalmente na edição 862 de CartaCapital, com o título “Conteúdo quase nacional”