Só o bolsa família não resolve

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15004260Quando concluiu a graduação em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, no final da década de 70, o carioca Ricardo Paes de Barros, mais conhecido como PB, poderia ter escolhido o emprego que quisesse. Decidiu cursar um mestrado em matemática no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada e entrou como pesquisador no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. No começo dos anos 80, foi para os Estados Unidos fazer um doutorado em economia na Universidade de Chicago.

Lá, teve como orientador James Heckman, que anos mais tarde ganharia o Prêmio Nobel de Economia por seus estudos sobre educação. Uma vez no Brasil, Paes de Barros, já decidido a se dedicar à questão da desigualdade, deu início a uma trajetória que fez dele a maior autoridade em temas sociais do país.

Mesmo tendo a oportunidade de fazer carreira como professor em universidades de ponta nos Estados Unidos, ele preferiu ficar no Brasil. Entre 2011 e 2015, foi subsecretário de Ações Estratégicas da Secretária de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Desde o ano passado é professor na escola de negócios Insper, em São Paulo, e economista-chefe do Instituto Ayrton Senna.

Na área social, quais foram os grandes avanços do Brasil no período recente?

Desde 2003 o Brasil fez avanços sociais praticamente sem precedentes em nossa história. No âmbito das Metas do Milênio da ONU, o Brasil se comprometeu a diminuir a pobreza em 50% num prazo de 25 anos. Oito anos depois, já tínhamos atingido esse objetivo. Essa redução é muito acelerada e muito consistente.

Qual foi o papel do Bolsa Família nessa redução?

O Bolsa Família foi de extrema importância para atender os 10% mais pobres. São os pobres entre os pobres. Por um bom tempo, a renda dos 20 milhões de brasileiros mais pobres aumentou anualmente cerca de 10% per capita. Mas o que fez com que a redução da pobreza e da desigualdade tivesse mais consistência foi a inclusão produtiva: pessoas acima dos 10% mais pobres que conseguiram um emprego formal e saíram da pobreza pelo próprio esforço.

Que políticas deram mais certo para a redução da pobreza e a queda da desigualdade?

O sucesso dos governos do PT na área social se deve ao fato de, sem muita ideologia, terem tentado de tudo. É difícil encontrar uma política social no mundo que não tenhamos no Brasil. Houve ainda uma criação espetacular de empregos formais. No início da década passada, a formalização começou a crescer de maneira muito intensa. Esse resultado tem como causa uma série de políticas governamentais. A lição que fica é que o Brasil é capaz de gerar gigantescos ganhos sociais. Olhando para a frente, o difícil vai ser honrar esses ganhos e fazer mais. E, obviamente. é preciso fazer mais.

Isso quer dizer que é necessário criar novos programas?

De forma alguma. Já temos todos de que precisamos. É preciso fazer uma grande arrumação nos programas existentes e promover um choque de gestão, sem deixar que seja reduzida a velocidade com que a pobreza vem caindo. Como? Retomando ações que ficaram de lado nos últimos anos. Falo de cumprir os orçamentos religiosamente, empregar o dinheiro de forma muito mais eficiente e medir os resultados das políticas públicas para conseguir fazer mudanças baseadas em evidências, O objetivo mais importante para o Brasil hoje é a inclusão produtiva.

Como promover a inclusão produtiva num cenário de recessão e desemprego?

Vou dar um exemplo. Quem tem o Bolsa Família e recebe uma proposta de emprego formal pode não aceitar por acreditar que o beneficio é algo garantido e que o emprego ofertado pode durar pouco tempo. O governo de Dilma Rousseff já vinha tentando corrigir esse equívoco. Definiu que a pessoa pode voltar ao Bolsa Família em caso de perda de emprego. A regra mudou, mas não funciona na prática. É preciso fazer com que as pessoas entendam que não correm perigo de ficar sem renda. Talvez seja o caso de fazer ainda mais. Incentivá-las a aceitar um emprego, oferecendo o Bolsa Família nos primeiros três meses de trabalho. Se a pessoa for mantida no emprego, pode começar então a receber o salário-família, outro programa.

É preciso concatenar os programas existentes?

Exatamente. Quem tem um Fundo de Garantia muito alto não precisaria receber seguro-desemprego. Temos de buscar eficiência o tempo inteiro. Analisar os resultados dos programas e redesenhá-los.

Que tipo de mudanças o senhor propõe?

Neste momento de desemprego, é muito importante qualificar as pessoas que ainda estão empregadas. Qual é a lógica? A ideia é que essas pessoas continuem empregadas e fiquem mais produtivas. O Pronatec, programa federal de capacitação para emprego técnico, deveria ser muito mais voltado para o empregado do que para o desempregado. Dessa forma, o programa desenvolveria as habilidades que as empresas estão precisando. Essa mudança de ênfase não prejudicaria o desempregado. Quem está sem trabalho pode buscar uma vaga sabendo que, uma vez contratado, poderá melhorar. Também precisamos recuperar o Fies, que oferece crédito para o pagamento de mensalidades em universidades, e reativar o Prouni, programa que concede bolsas de estudos para a educação superior. Dá para fazer mais. Também precisamos valorizar o capital humano do trabalhador pobre com programas de certificação. Isso já está previsto no Pronatec, mas não estamos fazendo direito. Muitos trabalhadores têm anos de experiência em determinada atividade. Em vez de dar um curso novo, o governo pode certificar as habilidades que eles já têm, o que aumenta a chance de encontrar emprego.

Até agora o senhor só falou em melhorar programas existentes. O senhor sugere fechar algum deles?

Não é a hora de acabar com programas, mas torná-los mais eficientes. Vou dar um exemplo de rápida execução. Hoje, o governo decide quem é atendido pelo Bolsa Família com base no que as famílias dizem ter de renda. Isso abre espaço para que algumas pessoas que não precisam acabem recebendo o beneficio. A solução para esse problema pode ser implementada amanhã. Temos muitos dados sobre as famílias e podemos fazer uma triagem com base nessas informações, não apenas na renda declarada. Quem diz que não ganha nada, mas tem um alto consumo de energia elétrica, por exemplo, não deveria receber o beneficio. O estado do Rio de Janeiro usa uma metodologia desse tipo para fazer uma complementação de renda que oferece aos beneficiários do Bolsa Família. Não estou falando em cortar um centavo do Bolsa Família. Trata-se de atender quem realmente precisa.

Falando em cortes, os programas sociais não deveriam entrar no ajuste fiscal?

De forma alguma. Num país em que a metade mais pobre tem pouco mais de 10% da renda das famílias e o governo tem 40% do PIB, está totalmente equivocado quem diz que estamos em apuros na área fiscal devido aos programas sociais. O problema fiscal que causou essa crise toda tem a ver com outras políticas, sem relação com os 50% mais pobres. O caso da Previdência é emblemático. Os altos salários do setor público não beneficiam os mais pobres. Todo esforço de redução do déficit fiscal não deve e não pode afetar os gastos na área social.

Porque não poderia?

Tivemos um grande avanço nos últimos anos, mas os 10% mais pobres entre nós continuam tendo apenas 1% da renda. Para continuar a avançar nas próximas décadas, precisamos aprender com o que fizemos no passado e fazer melhor. Essa eficiência fará que sobrem mais recursos para quem mais necessita. Mas não se trata de cortar o orçamento atual. O cenário econômico mudou, e a vida dos pobres ficou mais difícil. Daqui para a frente, o país precisará ser ainda mais generoso e solidário do que na década passada. Só assim vamos continuar dando saltos na área social.

Fonte: Revista Exame – 25/05/2016