Raul Soares o navio prisão – O cisne negro dos mares

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O ano era  1964, o navio era o vapor “Raul Soares”, antigo navio misto (caga/passageiros), operado pelo antigo Lloide Brasileiro, a maior companhia de navegação estatal do Brasil. O “Raul Soares”, já bastante cansado, e obsoleto, pois foi construído em 1900! Portanto já tinha 64 anos de mar! Ele não estava mais subindo e descendo a costa brasileira na “estrada marítima”,  “Norte Sul”, como fez por décadas, transportando centenas de milhares de pessoas por este país.  Antigamente não tínhamos estradas pela costa, por isso eram os navios quem transportavam tudo! Este navio e demais da época estavam já ociosos aguardando desmanche na Baía de Guanabara (me lembro vagamente deles fundeados lado a lado em Niterói (?)). Quando um golpe militar mais uma vez solapa o poder nesta conturbada terra, imediatamente todos os “inimigos” do poder tem seus direitos cassados e prisões sumárias são feitas nas portas de fábricas, em universidades, sindicatos são fechados e destituídos, servidores concursados são exonerados, ou seja todos que pensavam diferente do então governo “provisório”, e que poderiam ser uma pedra no sapato, são perseguidos. Com tanta gente indo para cadeia não havia mais lugar para eles, então alguém na junta militar teve a “brilhante” ideia de usar estes velhos sucatões flutuantes como “prisão”, afinal eles são apenas prisioneiros mesmo, e ninguém saberia do paradeiro deles, quem iria se importar?

“Ladrões de bananas” Os descuidados caiçaras que passavam com suas canoas perto do navio eram presos e submetidos a interrogatórios que nunca provaram coisa alguma contra ninguém. Enquanto eram interrogados, suas cargas, geralmente bananas ou peixes, eram subtraídas pelos soldados.

O Raul Soares ex-Cap Verde, ex-Madeira da Hamburg Sud, construído em 1900. Era navio de emigrantes. Foi adquirido pelo Lloyd Brasileiro em 1925 para a linha Brasil-Alemanha. Sua antiga armadora era a Hamburg-Sud. Passou por duas guerras, e teve um fim triste. Durante o golpe de 1964, serviu como navio prisão no Porto de Santos.  Foto : Acervo J.C. Rossini.

Estes navios prisão não eram cadeias para criminosos comuns, como assaltantes, assassinos, estupradores, e outros marginais, mas serviu como calabouço para sindicalistas, médicos, advogados, empresários, estudantes, operários, a maioria chefes de família, pessoas de bem, e qualquer um que tivesse ideias diferentes.  A “genial” ideia de usar os porões de um velho navio como celas coletivas, trouxe a tona, as mais degradantes condições que um ser humano possa imaginar. Estes navios não tinham mais sistema sanitário ativo, nem calefação e refrigeração, eram banheiras flutuantes, enferrujadas, fazendo água. Naquele tempo as “Sociedades Classificadoras”, a Organização Marítima Internacional (IMO), e outras entidades, não tinham qualquer autoridade, ou normas contra isso, e também vivíamos no tempo do “manda quem pode” e  “obedece quem tem juízo”. Este navio em particular o “Raul Soares”, realmente existiu, não é imaginação de “esquerdistas”, nem teoria da conspiração. Pessoas foram encarceradas em condições desumanas, sofreram tortura psicológica, alguns foram mortos.- Isto ocorreu antes do AI 5. Na memória dos parentes e sobreviventes tudo isso foi verdade, inclusive em que estava do outro lado da cela, por mais que negue, não pode fazer o Raul Soares desaparecer dos mares, da Baía de Santos. O povo santista que viveu naqueles tempos soube muito bem do navio dos horrores, o “cisne negro”. Pelo menos 2 livros foram escritos sobre este episódio lamentável. A censura até tentou impedir, mas após o enfraquecimento do regime (por volta de 1979), estes livros e reportagens vieram a tona, e por mais que negassem tais fatos, as cicatrizes e as vidas que se foram são testemunhas oculares de fatos que não devem nunca mais retornar.