Michael Sandel: “A política precisa se abrir à religião”

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Michael Sandel na Universidade Harvard. Ele acha que a lógica de mercado está avançando rápido demais, sem o debate necessário (Foto: Stephanie Mitchell/Harvard Staff Photographe)

Por MARCOS CORONATO, Revista Época

A sociedade brasileira se acomodou perigosamente a uma ideia. quem não pode pagar um colégio particular não tem como garantir aos filhos educação de qualidade. Convivemos com situações variadas em que o dinheiro manda: com ele, é possível eleger políticos, passar à frente da fila em parques de diversões e até adquirir o direito de emitir poluentes no ar comprando créditos de carbono. O fenômeno não é só brasileiro. Em diversos países, ricos e pobres, experimentam-se os limites do poder do dinheiro para que caçadores possam caçar, crianças sejam incentivadas a ler mais e pacientes consigam atendimento médico decente. Um dos filósofos mais populares do mundo, o americano Michael Sandel, acha que estamos indo rápido demais.

 

“Quero provocar agora o debate que deveríamos ter tido, e não tivemos, nas últimas décadas: onde deve e onde não deve valer a lei de mercado”, afirma Sandel, professor na Universidade Harvard. Ele acha que usar os mecanismos de mercado em aspectos variados da vida é um exagero dos economistas. Ele se opõe a pesquisadores como o ganhador do Nobel de Economia Gary Becker, maior estrela de uma corrente de pensamento que inclui, entre outros, os brasileiros Carlos Eduardo Gonçalves e Mauro Rodrigues, autores de Sob a lupa do economista.

Sandel, um filósofo de fala pausada, virou celebridade por causa da repercussão de seu curso “Justiça”, à disposição na internet. Em seu livro mais recente, O que o dinheiro não compra (Editora Civilização Brasileira), Sandel defende um resgate dos princípios e das convicções morais diante da lógica de mercado, em contraponto aos que pregam soluções técnicas e ênfase apenas nos resultados. Nessa defesa, faz propostas polêmicas, como acolher no debate público as convicções religiosas. Sandel estará no Brasil em agosto, a convite da consultoria Amana Key, para apresentar palestras em Fortaleza, São Paulo e Brasília.

ÉPOCA – O cidadão comum precisa fazer escolhas sobre questões cada vez mais complicadas, relacionadas a economia, meio ambiente, saúde pública, tecnologia. A filosofia pode nos ajudar?

 
 

Uma fonte de corrupção
é a concentração de poder político sem fiscalização.
A outra é o poder do dinheiro sobre a vida pública

 

 

 

Michael Sandel – Sim, potencialmente. A filosofia pode contribuir com a cidadania da seguinte forma: ser um bom cidadão é mais do que votar no dia da eleição. O cidadão deve se manter informado sobre as questões públicas, debater com outros cidadãos sobre o bem comum, ajudá-los a formar as decisões deles. E o único jeito de deliberar sobre o bem da coletividade é encontrar, logo abaixo da superfície de nossas discordâncias políticas, os princípios importantes que temos em comum – justiça, equidade, liberdade, democracia. Temos de discutir quão diferentes são nossas concepções de justiça e liberdade, e essas questões são filosóficas. Tento promover a ideia da filosofia pública, excitante, desafiadora e acessível a todos os cidadãos.

ÉPOCA – O senhor vem tratando dessas questões complicadas em suas aulas, e com elas consegue empolgar alunos jovens. O que o senhor aprendeu, como professor, nesses anos em que ministra o curso de filosofia política?


Sandel –
Uma das mudanças mais dramáticas ao longo da história do curso foi que, no início, ele era ministrado na universidade, para pessoas que se reuniam num anfiteatro. Nos últimos anos, as aulas completas foram divulgadas pela internet e pela televisão, e o curso se tornou um fenômeno global. O resultado é atordoante, além de qualquer expectativa que eu tivesse. O que aprendi, ao interagir com pessoas de culturas e origens muito diferentes, foi tratar o mesmo tópico de muitas perspectivas distintas. Em agosto, vou ao Brasil e quero saber as visões e as opiniões das pessoas aí sobre a justiça, a liberdade e o bem comum. Outra mudança que fizemos ao longo dos anos: os filósofos que estudamos continuam basicamente os mesmos desde o início do curso, mas os eventos que usamos como exemplos vêm mudando. O jeito que achei de envolver os estudantes foi fazer com que as leituras filosóficas, os conceitos e as ideias, muitas delas abstratas e difíceis, conectem-se com dilemas contemporâneos, controversos, desafiadores. Sobre esses dilemas, todo mundo tem opinião, mesmo que nunca tenha estudado filosofia. O jeito de atrair o estudante é mostrar que as opiniões dele estão conectadas às ideias que os filósofos vêm desenvolvendo há séculos. Isso tem muito a ver com engajar os cidadãos. Espero que a filosofia nos ajude a ter melhores ideias no debate público.

ÉPOCA – No Brasil, há grupos crescentes de cidadãos que definem suas atitudes na vida, além de suas escolhas eleitorais, de acordo com a orientação religiosa. Isso traz algum perigo para a vida pública?


Sandel –
É uma questão complicada. A relação entre política e religião tem uma história longa e difícil. Os filósofos políticos debatem há muito tempo qual seria a relação adequada entre as duas, com duas preocupações principais. Uma é que as convicções religiosas sejam intolerantes, dogmáticas, estreitas, e tragam isso para a política. A segunda preocupação é que, como as sociedades modernas abrigam muitas diferenças religiosas, trazer essas divergências para a política poderia gerar discordâncias irremediáveis dentro do debate público. Não acredito que possamos ou devamos insistir numa separação completa entre política e convicções religiosas. Por dois motivos. O primeiro: é verdade que a religião pode trazer para a política intolerância e dogmatismo, mas também é verdade que não apenas as convicções religiosas trazem esses males. Algumas ideologias seculares também geram problemas do mesmo tipo. O que devemos isolar da política, então, é a intolerância e o dogmatismo, seja qual for sua fonte, para que possamos nos respeitar e debater, cultivando uma ética de respeito democrático. Meu segundo motivo para não insistir nessa separação completa entre política e religião é que a política diz respeito às grandes questões e aos valores fundamentais. Então, a política precisa estar aberta às convicções morais dos cidadãos, não importa a origem. Alguns cidadãos extraem convicções morais de sua fé, enquanto outros são inspirados por fontes não religiosas. Não acho que devamos discriminar as origens das convicções ou excluir uma delas. O que importa é o debate ser conduzido com respeito mútuo.

ÉPOCA – Além do componente religioso, há no debate público atual nos Estados Unidos um tanto de ressentimento contra a lógica de mercado. Hoje, o senhor vê mais força no avanço do livre mercado ou no clamor popular contra ele?


Sandel –
Vejo força nos dois. O objetivo de meu livro é encorajar e inspirar o debate público sobre o mercado e a sociedade. Nas últimas décadas, vivemos um período de triunfalismo do mercado. Mas o papel dos mecanismos de mercado cresceu e avançou para além dos campos do bem-estar material – chegou às relações pessoais, saúde, educação, vida cívica. Quero provocar agora o debate que deveríamos ter tido e não tivemos nas últimas décadas: onde deve e onde não deve valer a lei de mercado? Se você pergunta se o livro é um alerta sobre o papel do dinheiro especificamente nos Estados Unidos, acho que os acontecimentos que descrevo representam uma tendência geral. Certo, são mais evidentes, mais traumáticos nos Estados Unidos do que na maioria dos outros países. Acredito, no entanto, que a mudança em andamento nos países desenvolvidos cria as mesmas questões e desafios também nos países em desenvolvimento economicamente bem-sucedidos. Uma pergunta vale para todas essas nações: queremos ser uma sociedade que conta com a economia de mercado ou uma sociedade que é um mercado? A economia de mercado é um instrumento para alcançar o bem público, uma ferramenta para a organização da produção. Uma sociedade mercado é algo diferente, em que tudo está à venda, em que as relações de mercado governam cada aspecto da atividade humana. Em muitas nações, não só nos Estados Unidos, há uma tendência de transformar uma sociedade com economia de mercado em uma sociedade mercado.

ÉPOCA – Qual o problema em usar mecanismos como uma empresa pagar pela proteção ambiental em outro lugar e assim ganhar o direito de poluir, ou pagar para uma criança ler, se os resultados finais forem menos poluição global e as crianças lendo mais?

Sandel – Algumas vezes, os mecanismos de mercado podem ser eficazes. Não argumento contra todos os usos desses mecanismos. Mas sempre que usamos incentivo financeiro para resolver problemas sociais, para obter ganhos para a sociedade, temos de considerar o efeito desses mecanismos nas atitudes e nos valores que estamos tentando cultivar. No caso de pagar a uma criança US$ 2 por livro lido, realmente acontece que a criança lê mais livros – e também que as crianças que liam anteriormente passam a ler livros mais curtos. Como o dinheiro afetou a atitude da criança em relação à leitura e ao aprendizado? É provável que ela passe a considerar a leitura como um trabalho a fazer em troca de pagamento. Se isso acontecer, o incentivo financeiro comprometeu o amor pela leitura e pelo livro. Meu argumento não é contra o mercado, e sim a favor das atitudes e valores com que todos nos preocupamos.

ÉPOCA – O senhor afirma haver uma conexão entre a disseminação dos mecanismos de mercado para áreas diversas e o aumento da corrupção. Há algum aumento perceptível da corrupção nos últimos anos?


Sandel –
A corrupção tem muitas fontes. Uma fonte é a concentração de poder político sem a correspondente obrigação de prestar contas, são as instituições políticas isoladas do cidadão. Outra fonte é o poder do dinheiro, e permitir que ele domine aspectos da vida pública que não têm a ver com o mercado. A vida cívica e a política deveriam ser orientadas para o bem comum. Mas, crescentemente, o dinheiro domina a representatividade nas instituições políticas.