Lama de Mariana revela crise da gestão ambiental no Brasil

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Bombeiros buscam sobreviventes após rompimento de barragens da Samarco em Mariana, Minas Gerais (Foto: Felipe Dana/AP)

por Clóvis Borges – diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS)

O indiciamento de empresas e de executivos envolvidos na tragédia de Mariana, em Minas Gerais, representa um passo importante na busca de uma adequada responsabilização frente aos danos causados neste evento de proporção desmedida. A Polícia Federal tomou a iniciativa por entender que a poluição ocasionada em toda a área atingida chegou ao ponto de “resultar ou poder resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”, conforme rege o artigo 54 da Lei Federal de Crimes Ambientais.

É incontestável que os impactos decorrentes devem ser mitigados de forma adequada a partir de financiamentos compulsoriamente supridos pelas empresas envolvidas e que os responsáveis sejam punidos de maneira exemplar. Toda a sociedade espera que a atitude das autoridades competentes esteja dentro do rigor máximo, sem que a costumeira parcimônia com o dano coletivo seja mais uma vez uma prática adotada.

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No entanto, esse quadro agudo de destruição ambiental, com sérios efeitos sociais e econômicos agregados, é uma excelente oportunidade para evidenciar uma questão mais ampla e de efeitos muito mais danosos. Estamos tratando das manobras crônicas que envolvem o poder legislativo, alguns órgãos ambientais e instâncias correlatas, além das muitas modalidades de empreendimentos, públicos e privados, que geram impactos e riscos ambientais relevantes em nosso país.

Existe em nosso país um contínuo esforço em busca do acatamento a interesses setoriais, sistematicamente demandados às instâncias públicas. E elas, mais cedo ou mais tarde, facilitam de diferentes formas a viabilidade de atividades de grande impacto ambiental. Como se não bastasse, é agregado ao conjunto de facilidades estabelecidas por estas partes um amplo contingente de ilícitos permissíveis, uma vez que não existem estruturas mínimas de fiscalização e controle para sejam reprimidos de maneira adequada.

Seria de se esperar que as ações ilegais que grassam no país, destruindo nosso patrimônio natural, deveriam ser controladas a partir de órgãos ambientais estruturados, não afeitos a influências políticas e com contingente empoderado e suficiente. Mas sabemos que dificilmente as instituições funcionam dessa maneira, que seria a ideal. Raramente alguma dessas mazelas deixa de estar presente no dia a dia dessas instituições.

O fato de pouquíssimas vezes nos depararmos com consequências estrondosas, ocorridas em tão curto prazo, como o caso de Mariana, arrefece as reações da sociedade para a grande maioria dos impactos ambientais causados por uma infinidade de intervenções que excedem os limites e as normas técnicas que deveriam estar sendo respeitadas.

Ao invés disso, observamos uma constante tentativa de desmonte da legislação ambiental, a exemplo do Código da Mineração e do Código Florestal Brasileiro. Há também, em alguns casos, o desmonte dos órgãos ambientais, que perdem profissionais sem reposição, atuam sem condições adequadas de trabalho, são assediados continuamente por pressões políticas para não cumprirem suas obrigações coercitivas e, paralelamente, acelerarem processos de licenciamento.

Não raro, a mídia explora situações em que a emissão de licenciamentos ambientais é colocada como uma questão sumamente impositiva. Torna-se uma questão apenas política, e não mais técnica, atropelando processos e gerando estudos e avaliações muito aquém do que seria necessário realizar. Quando não, gerando licenciamentos a partir da assinatura dos próprios executivos de órgãos ambientais, face à recusa explicitada pelos técnicos da instituição.

É importante evidenciar que a crise da gestão ambiental do Brasil tem a exata dimensão dos mais escabrosos exemplos de corrupção da atualidade. As manobras ilícitas deixaram de ser uma exceção para se tornar uma prática. A desfaçatez de seus interlocutores é tamanha que ocorre uma sistemática inversão de valores, ao culpar instituições conservacionistas, o Ministério Público e a Polícia Federal, dentre outras instâncias, de serem responsáveis pelo atraso do desenvolvimento e atuarem em contrariedade aos interesses da sociedade.

O verdadeiro atraso de uma sociedade é ser corrompida por interesses eminentemente econômicos, sem considerar as consequências de suas atividades, nem os meios pelos quais seus objetivos são atingidos. O caso de Mariana é emblemático e muito grave, mas não chega aos pés do que nos atinge diária e silenciosamente.

São milhares de iniciativas que deveriam estar sendo controladas ou reprimidas, e que seguem sem restrições suficientes, diminuindo nossa capacidade de nos tornar uma sociedade mais justa, mais equilibrada e que utiliza com consciência e responsabilidade seus recursos naturais.

Os crimes contra a natureza no Brasil demandam uma Operação Lava Jato ainda mais ampla do que a atual. Representa uma empreitada ainda mais importante, se quisermos corrigir as amplas e profundas distorções que nos tornam um país onde o enriquecimento ilícito a partir da destruição da natureza é, ainda, uma via factível.

E que conta com o apoio praticamente irrestrito de muitas instâncias que perderam, de forma determinante, o sentido de justiça e do real interesse público.

Clóvis Borges – diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS)