Entrevista Jefferson Cardia Simões, glaciologista

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Glaciologista acredita que o Continente Gelado é tão importante quanto a Amazônia e explica por que o Brasil precisa estar presente na região / Divulgação

Que posição o senhor ocupa hoje no Programa Antártico Brasileiro (Proantar)?

Sou o cientista sênior do programa. Fiz toda a carreira no Programa Antártico. Concentrei-me especificamente em glaciologia, mas também em geologia polar. Hoje sou também o vice-presidente do Comitê Científico sobre Pesquisas Antárticas (Scar), um organismo internacional, além de professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Por que o Brasil precisa ter presença de pesquisa na Antártica?

São dois motivos básicos. Um motivo é geopolítico. No sistema do Tratado Antártico, que é o regime jurídico para a região ao sul do Paralelo 60, para um país ter direito de voto, existe a exigência de manter um programa contínuo de pesquisa e de investigação científica. Nós estamos tratando, nesse caso, da definição do futuro de 7% da superfície do planeta Terra, cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados. O Brasil só tem direito a voto no tratado por causa disso. O outro motivo é científico. A Antártica tem um papel tão importante quanto a Amazônia no sistema atmosférico e oceânico. A circulação do oceano e da atmosfera antártica é necessária na modelagem de todo o sistema. Um exemplo claro é a gênese e a frequência das friagens, nas frentes frias que penetram na América do Sul. Na Antártica, o que encontrarmos de poluição atmosférica, de mudanças do clima, de impacto na biota, são sinais globais, não sinais locais.

O que pode ser explorado economicamente na região?

Os recursos marinhos vivos já são explorados pela indústria pesqueira. Mais que isso, existe a perspectiva da bioprospecção — algumas adaptações de organismos vivos antárticos a condições extremas, de temperatura, de luz ou de falta de água, principalmente no inverno, podem ser aproveitadas pela indústria farmacêutica e de alimentação.

Pesquisadores brasileiros destacam impactos do aquecimento global para as regiões polares apontados no relatório do IPCC. / Divulgação

 Faz sentido um país em desenvolvimento como o Brasil investir num lugar tão distante de suas fronteiras?

Ao todo, 36 países realizam pesquisas na Antártica. Mesmo países com condições socioeconômicas piores que as do Brasil fazem investimentos maiores. Entre os Brics (grupo de cinco países emergentes), o Brasil tem o menor investimento na Antártica depois da África do Sul. Por que a Índia tem interesse na região? Por que a China é hoje o segundo país que mais investe na Antártica? A Antártica é um player de 7% do futuro do planeta Terra, crucial no conhecimento científico.

 O senhor considera que o recurso usado para reconstruir a Estação Comandante Ferraz foi um bom emprego dessa verba?

A estação é a casa do Brasil na Antártica. É quase uma representação diplomática. Ela reforça e demonstra o interesse do Brasil. É bom lembrar que esses recursos não vieram do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), mas sim do Ministério da Defesa, que alocou essa verba. Existe um interesse muito grande da Marinha do Brasil, mas pela primeira vez a comunidade científica foi ouvida na construção da estação. Foi um processo em que foram alocados 14 espaços para laboratórios. Cinco já estão completos. Mas o programa de pesquisa é muito maior do que a Estação Ferraz. Vamos continuar com 25% a 30% da pesquisa sendo feita na estação. O restante da pesquisa é realizado no navio polar Almirante Maximiano, em acampamentos e no módulo Criosfera 1, que está instalado 2.500 quilômetros ao sul de Comandante Ferraz.

O Brasil tem agora uma estação de pesquisa moderna, mas existe dinheiro para fazer pesquisa de ponta lá? Os cortes de orçamento do MCTIC impactaram o programa?

O grande problema da ciência brasileira é que há pessoas da área econômica do governo que insistem em contingenciar o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Espero que um dia mudem essa mentalidade, mas felizmente o Programa Antártico Brasileiro recebeu um investimento grande no edital de 2018. Foram alocados e já implementados projetos com cerca de R$ 15 milhões para um período de três a quatro anos. Não é uma fortuna, mas pelo menos mantém os 19 projetos de pesquisa atuais funcionando. Fora isso, também foram alocados R$ 7 milhões para o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT-Criosfera), que está sob minha administração geral e executa cerca de 50% da pesquisa antártica brasileira. Temos uma previsão de continuidade em meados de 2022. A partir daí, é uma grande incógnita.

Fonte: Revista Época / Janeiro de 2020