Amyr Klink: “O Brasil esqueceu do mar”

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Foto: Marina Bandeira Klink

Por BRUNO CALIXTO / Revista Época

Poucas pessoas conhecem tão bem o mar como Amyr Klink. Desde quando largou a economia e se lançou nos oceanos, Amyr já fez dezenas de viagens à Antártica, conheceu os contornos da costa brasileira e aprendeu a construir suas próprias embarcações. Nesses anos de exploração e expedições, Amyr se tornou uma testemunha de como estamos mudando o mundo – ele critica desde a quantidade impressionante de lixo despejado no mar até a paralisia da política brasileira para a navegação.

Amyr Klink estará em Belo Horizonte, no dia 12 de junho, durante o 11º Seminário Meio Ambiente e Cidadania, para falar sobre as mudanças climáticas na visão do viajante. Ao Blog do Planeta, ele falou sobre sua experiência e sobre a difícil relação do povo brasileiro com a água. “Acho que houve um momento da nossa história que a gente esqueceu do mar”.

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Blog do Planeta – Nós sempre vemos a questão das mudanças climáticas retratada na visão de cientistas, de biólogos, de políticos. Mas nunca ouvi um relato sobre isso na visão do viajante. Como é essa questão na visão do viajante?

Amyr Klink – Eu tenho uma experiência de 27 anos de viagens à Antártica. Em termos científicos, não quer dizer nada, mas nós começamos a perceber mudanças de alguns anos para cá. É impressionante ver o quanto acelerou a deterioração de todos os produtos de polipropileno, que é muito sensível aos raios ultravioletas. Todas as faixas, cabos, velas, que há 15 anos duravam quatro, cinco temporadas na Antártica, hoje duram apenas uma temporada. Há dez anos, era inimaginável encontrar ventos de 110 nós, que são quase 200 km/h. Nós temos contato com fenômenos que mostram que existe uma parcela de responsabilidade nossa. Quanto, eu não sei. A Terra já foi mais quente, já foi mais fria. Mas é fato que uma parte das alterações é de nossa responsabilidade. Eu também tenho o privilégio do convívio com pesquisadores que estão estudando a Antártica, estão falando de sustentabilidade e dos problemas climáticos. Uma coisa interessante é que nem tudo é consenso ente eles. Outro aspecto é que, conversando com eles, vemos que há muita baboseira publicada na imprensa em geral, muita informação torta.

Blog do Planeta – Esse contato com os pesquisadores é na base brasileira da Antártica?

Klink – Na verdade, o Brasil não tem base na Antártica. A base brasileira fica numa ilha subantártica. Acho que o Brasil já tem status geopolítico para ter uma base no continente antártico, mas ainda não tem. A base brasileira eu não frequento tanto. É um lugar onde as condições climáticas são muito instáveis, é um péssimo lugar para ancorar barcos. Tenho mais contato com os pesquisadores das bases continentais, ao longo de toda a península antártica.

O que é bacana no nosso caso é que somos o único grupo que viaja regularmente para a Antártica com equipamento próprio. O Brasil não tem equipamento próprio, os navios brasileiros são feitos na Noruega. Nós projetamos e construimos as embarcações especificamente para esse tipo de viagem. Meu barco Paratii 2, por exemplo, foi feito para encalhar. Usamos técnicas de ancoragem de menor impacto. O barco encalha com a maré sobre uma pedra ou numa praia, e podemos passar períodos com condições adversas sem correr riscos. O resultado é um grau de observação dos fenômenos climáticos diferente. Em um ano na Antártica, podemos observar nevascas, os processos de degelo. A Antártica é interessante porque é uma espécie de memória dos processos climáticos da Terra. Ao longo do tempo você percebe que cada coisa que foi para lá continua lá, cada fenômeno que acontece lá continua lá.

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Blog do Planeta – Você deve ter observado também situação de lixo, de poluição do mar.

Klink – Sim, é visível, e você não precisa ir para para a Antártica ver isso. Pelo menos no aspecto visual, você percebe quando passa na frente da Bacia do Prata, na foz do Capibaribe, ao largo do litoral de Santos. Mas essas observações visuais são só uma parte do problema. Nós temos outros problemas, como acidez, poluição química, que não são visíveis. E aí os meus olhos não têm nenhuma importância.

Blog do Planeta – Sempre que falamos de meio ambiente aqui no Brasil, nós focamos mais na questão da Amazônia. Eu fico com a sensação que a questão do mar, dos oceanos, sempre fica meio de lado. Como você a nossa relação, a relação do brasileiro, com o mar?

Klink – Acho que houve um momento da nossa história que a gente esqueceu do mar. Eu vejo isso na cultura, na arquitetura. No Rio de Janeiro, vemos as pessoas na praia, mas não no mar. Brasileiro gosta de praia, mas de mar mesmo, eu não sei. Na arquitetura colonial, as cidades viraram de costas para o mar. Nós usamos o mar como depósito de lixo. É como se tivéssemos medo do mar. É verdade que, em muitos aspectos, nós temos um mar mais pobre. Nós estamos na descida quente do anticiclone do Atlântico Sul, e as partes quentes são menos ricas em nutrientes do que as frias. Também tem o fato que nosso litoral não tem tantas possibilidades. Ainda assim, temos o privilégio de ter bacias hidrográficas que antes de chegar ao mar atravessam o país, e uma posição estratégica em relação ao mar que não é valorizada.

Blog do Planeta – O que significa dizer que nosso litoral não tem tantas possibilidades?

Klink – Nós não temos muitas baías. O Brasil tem grandes extensões de litoral. Por exemplo, todo o litoral do Rio Grande do Sul é uma grande praia. Mas o mesmo Rio Grande do Sul tem a entrada para a Lagoa dos Patos, que é um ativo importante. Porto Alegre, uma cidade que tem “porto” no nome, está castrada pela legislação dos portos. Há descaso com o litoral de Santa Catarina, que foi ocupado indiscriminadamente, com a baía de Santos. São problemas que se repetem em todas as cidades do país.

Blog do Planeta – Qual a causa desses problemas? É uma falha da administração pública?

Klink – É uma questão de gestão pública, mas também de cultura. É impressionante como a gente hostiliza tudo o que está ligado à água. A legislação é péssima no Brasil. A gente aplica as leis ambientais e de proteção pasteurizadamente, indiscriminadamente. Não pode chegar no mar? Errado. Tem lugares com caracteristicas que devem ser exploradas e aproveitadas, e tem outros lugares que devem ser definitivamente preservados. Mesmo quando a legislação tem aspectos positivos, esses aspectos não são cumpridos. A lei obriga que as barragens construam eclusas. No rio Tocantins, foram feitas barragens mas não as esclusas. A hidrovia Tietê-Paraná, que tem dois mil quilômetros de malha navegável, está totalmente subutilizada. É muito descaso por parte do poder, e também por parte da população, que não mostra interesse. Mas eu não sou um pessimista. Eu acho que a gente ainda vai voltar a abrir os olhos para o potencial marítimo e hídrico do Brasil.

Blog do Planeta – Há casos onde as coisas estão funcionando?

Klink – O que está funcionando, hoje, funciona por causa da iniciativa privada. São grupos econômicos que não estão esperando um burocrata do governo se alfabetizar, que estão tomando medidas próprias. O setor do agronegócio tem iniciativas interessantes para usar as hidrovias. A tecnologia evoluiu, não há tanto risco de contaminação dos rios, e já vemos empresas de celulose, de soja, utilizando a malha hidroviária. O que eu lamento é que isso só está acontecendo em uma escala empresarial muito alta. As pequenas prefeituras, pequenas iniciativas de turismo e lazer ainda não acordaram para isso.

Amyr Klink (Foto: Marina Bandeira Klink)

 

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Blog do Planeta – Quer dizer, estamos desperdiçando esse potencial até mesmo para turismo.

Klink – O governo ainda não acordou para o turismo. As praias do nordeste estão imundas. Nós gostamos de dizer que as praias brasileiras são as mais bonitas do mundo, mas não é verdade. O potencial que temos para o turismo não está na beleza das praias. A nossa beleza é o conjunto de atributos. São praias charmosas, serra, floresta, e principalmente o atributo humano, que acho muito valioso. O Brasil tem estabilidade institucional, um povo alegre, e não pratica um turismo de plástico como é no Caribe ou no Mediterrâneo, onde tudo já está moldado. Esse é o patrimônio brasileiro, mas a gente não se dá conta disso.

Blog do Planeta – Você tem uma casa em Paraty que não tem energia elétrica, não tem estrada. Por quê?

Klink – É uma casinha fora da cidade, sem luz, sem estradas. É uma propriedade grande, com grutas, áreas verdes, são áreas importantes. Eu quero mostrar, com essa propriedade, que é possível ser economicamente viável sem ter que incorporar esse modelo que eu abomino de condomínios, verticalização. Eu não permito passagem de estrada e meus vizinhos também não querem estrada. Muita gente acha que é uma casinha isolada. Não é. O caminho já está feito, é o mar. Eu vou da porta da minha casa pra cidade, para a Antártica, para Nova York, Sidney, pelo mar. É a casa mais conectada do mundo, mesmo não tendo estrada ou sinal de celular.