A empresa que nasce na sala de aula

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NATÁLIA SPINACÉ / Revista Época

 Em 1993, para se formar no curso de moda da Faculdade Santa Marcelina, os estudantes tinham de apresentar um desfile com três criações. Na época, a moda acabara de sair do exagero dos anos 1980. A tendência eram coleções clean, como dizem no jargão da moda, com pouca mistura de cores, formas retas e suaves. Em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), um dos estudantes optou por algo diferente dos padrões: apresentou um desfile com 17 roupas com conceito oposto ao que era tendência na ocasião. As modelos usavam transparências, estampas de caveira, blusas que lembravam camisas de força e bonecos ensanguentados nas mãos. Na época, ele já era apontado por alguns professores de moda como um novo talento. O TCC consagrou essa imagem e deu um belo empurrão à carreira dele. Rendeu páginas em revistas e elogios de especialistas como a consultora de moda Costanza Pascolato. Hoje, o jovem estilista Alexandre Herchcovitch é uma referência no meio.
PAULO E GUILHERME SILVEIRA  Engenheiros de computação e empresários  (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

 

Ao contrário de Herchcovitch, a maioria dos estudantes brasileiros encara o TCC como uma tarefa burocrática. Só que o Trabalho de Conclusão de Curso pode ser mais que uma boa maneira de encerrar a graduação. É uma oportunidade de começo de carreira, seja para criar o próprio negócio, seja para chamar a atenção de empresas importantes da área.

De acordo com profissionais de educação e consultores de empreende­dorismo, a internet oferece hoje informações mais precisas sobre como funcionam as áreas de interesse dos alunos, desde condições do mercado até como abrir um negócio. Isso deu aos jovens condições de se lançar ao mercado mais cedo. Aqueles que nasceram nos anos 1980 e chegaram ao mercado de trabalho a partir dos anos 2000, graças à fase de prosperidade econômica, não gostam de se manter em cargos subalternos. Querem salários altos já no início da carreira. “Eles são imediatistas, buscam o resultado por conta própria”, diz José Dornelas, professor em empreendedorismo do curso de administração da Universidade de São Paulo (USP).

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Para acompanhar o interesse dos estudantes de colocar em prática as próprias ideias, as universidades começam a oferecer cursos relacionados a empreendedorismo, mesmo que fora da grade curricular. A USP abriu, no ano passado, o curso de extensão Empreendedorismo no Ambiente Acadêmico. O objetivo é ensinar a estudantes de qualquer um dos cursos de graduação noções de como tocar um negócio ou criar um produto. A procura foi tamanha que as 90 vagas iniciais tiveram de ser triplicadas.

Alexandre Herchcovitch (Foto: Ricardo Correa/Ed. Globo)

 

O número de incubadoras de empresas dentro das universidades cresceu. Segundo dados da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores, das 53 incubadoras do país, 66% ficam dentro de universidades. “Queremos transformar o conhecimento adquirido na universidade em oportunidades reais”, diz Lucimar Dantas, gerente da Incubadora de Empresas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Só na USP, existem hoje 250 empresas incubadas. “Há dez anos, não havia nenhuma”, afirma Vanderlei Salvador Bagnato, da Agência USP de Inovação.

Lidar com o comportamento empreendedor dos jovens é uma novidade no Brasil. As universidades ainda tentam descobrir seu papel nesse ambiente. Para muitos acadêmicos, despertar o espírito empreendedor não é uma das funções de um curso universitário. “O papel da universidade é dar uma base sólida de conhecimento técnico e científico”, diz Marcelo Finger, professor de ciência da computação da USP. “Para o aluno que quer empreender, a universidade deve dar apoio e orientação fora do horário normal das aulas.” A universidade pode dar as ferramentas necessárias para auxiliar os alunos, mas o interesse e a vontade de correr atrás de um projeto são fundamentais para um empreendedor iniciante. “O aluno que apenas assiste às aulas e vai para casa dificilmente conseguirá colocar uma ideia em pé”, afirma José Roberto Cardoso, diretor da Escola Politécnica da USP. “É preciso aproveitar os cursos, as palestras e as atividades que estão fora do currículo.”

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Nos Estados Unidos, as universidades estão mais preparadas para apoiar o aluno empreendedor. Em 1985, havia cerca de 250 cursos sobre empreendedorismo nas universidades. Em 2007, esse número saltou para 5 mil, de acordo com a fundação Kauffman. Universidades americanas como Stanford, Cornell ou Princeton incluem em suas grades programas que ajudam os estudantes a transformar boas ideias em produtos ou empresas. A Universidade Stanford tem uma série de iniciativas que ligam os trabalhos de estudantes a empresas. O curso de design de produto da universidade é afiliado à PCH International, empresa de acessórios para tablets, smartphones e e-readers. Ela ajuda a orientar os trabalhos dos alunos, dá dicas de como adaptá-los ao que o público procura e investe nas ideias que julga inovadoras. Na Universidade Cornell, o curso Princípios de Negócios e Empreendedorismo é obrigatório para alunos de todos os cursos.

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Para os educadores, o que faz o empreendedorismo ser mais valorizado nos EUA é, em boa parte, a educação que os estudantes recebem desde cedo. “Faz parte da cultura americana conscientizar o cidadão de que suas ideias são únicas e fazem diferença, desde o ensino fundamental. Isso não acontece nas escolas latino-americanas”, afirma Fernando Reimers, especialista em educação internacional da Universidade Harvard.

Despertar o espírito empreendedor não é apenas incutir nos jovens a vontade de ter a própria empresa. O conceito refere-se a cultivar no aluno uma série de características como iniciativa, persistência e autoconfiança, fundamentais em qualquer profissão.

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A escritora Vanessa Barbara nunca teve intenção de virar empresária. A persistência e a iniciativa, típicas de um empreen­dedor, a levaram a transformar seu trabalho de conclusão de curso em jornalismo num livro laureado com um dos mais importantes prêmios do Brasil. O livro amarelo do terminal, sobre a Rodoviária do Tietê, em São Paulo (editora Cosac Naify), venceu o Prêmio Jabuti na categoria Livro-Reportagem, em 2009. Foram dezenas de entrevistas e um ano de pesquisas. Para encontrar documentos históricos sobre a rodoviária, foram necessárias várias visitas às bibliotecas e aos arquivos de jornais da cidade. “É muito mais difícil que parece. Passei por maus bocados para encontrar tudo de que precisava e para atualizar os valores monetários que apareciam”, diz ela. Muitas das entrevistas feitas nesse período não foram usadas. Com o trabalho pronto, Vanessa decidiu enviar cópias para várias editoras. “Mandei para umas 15, ou mais. Só uma respondeu e, mesmo assim, demorou mais três anos até o livro ser publicado”, afirma Vanessa.

Vanessa Barbara (Foto: Renato Stockler/Na lata)

 

Enquanto Vanessa nem pensava em trabalho quando fazia seu TCC, o estudante de administração de empresas da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) Carlos Eduardo de Souza, de 24 anos, tinha ambições bem precisas. Carlos Eduardo diz que sempre quis montar uma empresa. Aproveitou para analisar opções quando foi fazer o trabalho de conclusão. “Decidi pesquisar sobre restaurantes de comida japonesa. Estudei o mercado de sushi no Brasil e no mundo.” Depois de se formar com notas altas na faculdade, ele e os amigos Lucas d’Acampora Prim, de 24 anos, e Paulo Hashimoto, de 25, montaram um plano de negócios para abrir o restaurante. Decidiram criar uma casa de comida japonesa para entrega domiciliar. “Pesquisando, descobrimos que as pessoas tinham um pé-atrás em relação à higiene das entregas de sushi. Colocamos, então, uma câmera na cozinha. O cliente pode acompanhar o trabalho do sushiman”, diz Lucas. No dia da inauguração, foram assaltados. Reabriram a casa 15 dias depois. Passados dois anos, o Kimitachi tem mais duas filiais e está prestes a virar franquia.

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Tão importante quanto conseguir transformar uma boa ideia em produto é buscar informações para entender como funciona uma empresa e o nicho de mercado escolhido. O engenheiro Paulo Silveira descobriu isso ainda estudante. Ele cursava engenharia de computação na USP, em 2002, quando criou um sistema para auxiliar professores a gerenciar notas e trabalhos e a se comunicar com os alunos. O programa foi seu trabalho de conclusão de curso. Alguns professores da USP o adotaram – e gostaram. Apesar disso, o projeto não foi para a frente. “Não tinha noção de como dar continuidade, de como fazer o marketing do que eu tinha criado”, diz. Pouco tempo depois, um sistema similar de outra empresa foi adotado em várias universidades. Paulo estava certo sobre o tipo de produto de que o mercado precisava, mas não entendia da área comercial.

Meninos do Kimitachi (Foto: Juliano Baby/ÉPOCA)

 

Apesar da decepção, Paulo gostou da experiência de empreender.Foi estudar fora e trabalhar. Depois de dois anos, voltou ao Brasil e montou com o irmão mais novo, Guilherme, uma empresa para ensinar aos alunos o que, na opinião dos dois, faltava na graduação. “A universidade dá uma base sólida para resolver problemas complexos e científicos, mas deixa de lado coisas mais simples, muito usadas num emprego convencional”, afirma Paulo. Os irmãos montaram a Caelum, uma escola para treinamento em linguagens de computador. Desta vez, Paulo pediu a ajuda de um contador para a administração. Oito anos depois, a Caelum tem mais de 90 funcionários e filiais no Rio de Janeiro e em Brasília. O erro no projeto de TCC ensinou uma lição a Paulo. “Pedir ajuda quando não se sabe algo é fundamental. Sem o contador, talvez o projeto pudesse ter dado errado, como da primeira vez que tentei”, diz.

A tendência, segundo profissionais da academia e do mercado, é que casos como Herchcovitch, Vanessa, os irmãos Paulo e Guilherme e os sócios do Kimitachi tornem-se cada vez mais comuns, desde que os alunos tenham empenho e dedicação. Sem isso, não há universidade que ajude.