O Watergate e a essência do jornalismo profissional

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Por mais que a tecnologia tenha trazido ameaças e desafios à atividade jornalística, na essência nada mudou desde o escândalo que levou à renúncia de Nixon
Por mais que a tecnologia tenha trazido ameaças e desafios à atividade jornalística, na essência nada mudou desde o escândalo que levou à renúncia de Nixon

por HELIO GUROVITZ  

Em plena campanha pela reeleição presidencial, o partido no poder se vê às voltas com uma investigação que atinge ministros e políticos de destaque no governo. A imprensa publica denúncia atrás de denúncia, é acusada de estar a serviço do partido adversário. Apesar do noticiário negativo, o governo vence a eleição. Pouco depois, as investigações revelam uma gigantesca operação de obstrução da Justiça. O escândalo faz o ocupante da cadeira presidencial balançar entre um processo de impeachment e a renúncia. “Quero que saibam que não tenho a menor intenção de me afastar, de maneira alguma, do cargo para o qual os cidadãos me elegeram”, diz em pronunciamento na televisão. Meses depois, escutas comprometedoras, mantidas em sigilo, tornam seu envolvimento evidente. Não há mais opção, a não ser renunciar.

Eis o resumo do maior escândalo político de todos os tempos. Não aquele em que você deve estar pensando. Trata-se do caso Watergate, que derrubou, em 1974, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. A história começa com uma ocorrência policial, a invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em Washington, por um grupo munido de equipamentos de escuta, câmeras e luvas cirúrgicas. A investigação de dois jovens repórteres do Washington Post, Carl Bernstein e Bob Woodward, liga os invasores à campanha para a reeleição de Nixon. Em meses de apuração, os dois desnudam um esquema escabroso de espionagem e sabotagem, montado sob o comando da Casa Branca. Nixon e seus asseclas usam dinheiro sujo para bisbilhotar a origem do que chamam de “vazamentos”. Depois, usam os mesmos métodos contra adversários e os próprios jornalistas.

Semanas antes da renúncia de Nixon, Woodward e Bernstein lançaram o relato do caso, hoje o maior de todos os clássicos na história do jornalismo investigativo: Todos os homens do presidente. Nesta segunda-feira, faz 40 anos que estreou o filme de Alan Pakula baseado no livro. Depois dele, Bernstein (Dustin Hoffman) e Woodward (Robert Redford) se transformaram em estrelas pop, ídolos venerados nas redações e inspiração para as novas gerações de jornalistas. Por mais que a tecnologia tenha trazido ameaças e desafios à atividade jornalística, na essência nada mudou desde Watergate. Nestes tempos de novos escândalos políticos e campanhas contra o jornalismo profissional, promovidas em blogs oportunistas, abaixo-assinados de ocasião e redes sociais, não custa repetir seus principais elementos:

1. Jornalismo é sempre de oposição. É comum políticos compararem, como álibi para se esquivar de notícias incômodas, o tratamento diferente a quem está no poder e na oposição. Isso deve ser ouvido nas redações como elogio. Significa que a imprensa cumpriu sua missão: fiscalizar com mais atenção o mais poderoso.

2. Jornalismo não é campanha política. Woodward e Bernstein são acusados de trabalhar para o adversário democrata de Nixon, George McGovern. Woodward, um republicano, apoia no íntimo várias diretrizes do governo, mas nem por isso deixa de derrubá-lo. O compromisso do jornalismo é tão somente com a verdade – não com as fontes das informações, nem com visões de mundo, com opiniões, muito menos com interesses políticos. Em várias ocasiões, informantes ficam irritados com as reportagens, mas nem por isso elas deixam de ser publicadas.

3. A busca da verdade exige técnica e princípios editoriais. As informações são verificadas com ao menos duas fontes independentes antes de publicadas. Todo envolvido é procurado para manifestar seu ponto de vista. Arquivos e bancos de dados são mantidos para referência.

4. Numa investigação complexa, que envolve várias esferas do governo, cada uma delas tem seus interesses. Jornalistas precisam manter distância de todas. Não podem funcionar como caixa de ressonância de juízes, procuradores ou policiais. Woodward e Bernstein falam com federais, promotores, frequentam a Casa Branca e o Congresso. Mas a maior parte da apuração vem da investigação deles próprios.

5. Apenas uma grande organização tem a força necessária para bancar o jornalismo diante da tentativa diuturna do governo de desacreditá-lo. No Post, o editor executivo, Ben Bradlee, e a própria dona do jornal, Katherine Graham, resistem, em nome da notícia, a investidas do próprio Nixon. Protegem, acima de tudo, a força investigativa de uma redação grande o bastante para deixar dois repórteres ocupados com um único caso ao longo de anos.

6. Jornalismo é uma vocação, definida por Bradlee com as seguintes palavras: “Conquanto um jornalista conte a verdade, de modo justo e consciente, não é seu trabalho preocupar-se com as consequências. A verdade nunca é tão perigosa quanto uma mentira no longo prazo. Acredito firmemente que a verdade liberta os seres humanos”.